Nota do Editor: o texto a seguir foi escrito em conjunto entre Max Fernandes e André "Sr. Genérico" Dumas. Para maior fluidez da leitura, a troca de redatores está sinalizada ao decorrer do texto com a devida autoria.
O texto a seguir contem spoilers de "The Penguin".
SINOPSE DE "THE PENGUIN"
Senhor Genérico: Janeiro de 1999. Na televisão, tínhamos um homem falando com sua psiquiatra sobre sua vida, mas na realidade aquele era o primeiro mergulho em um mundo cruel, brutal e altamente envolvente, uma revolução da mídia. Este é o início de The Sopranos, conhecida pelas terras brasileiras como Família Soprano. Esse seriado foi avassalador, além de ser uma das melhores narrativas já contadas na televisão, ele ainda mostrou a produtores, escritores e diretores de todos os lugares que a mídia televisiva não está eternamente atada a formatos episódicos e, em contrapartida, que o público estava mais do que pronto para abraçar narrativas longas, complexas e densas toda semana.
Mais ou menos 25 anos depois, temos Pinguim, série da HBO que conta os eventos que ocorreram logo após O Batman (2022), colocando sob os holofotes o personagem do magistral Colin Farrell. O sentimento de ver Sopranos e Pinguim foi o mesmo. Isso aqui é especial, mas vamos por partes.
Para começar: Pinguim é uma minissérie de 8 episódios dirigida por Craig Zobel e Helen Shaver, com produção executiva do próprio Matt Reeves, a mente por trás do filme mais recente do homem morcego. A série em questão mostra os eventos que ocorreram após o final de O Batman, com uma Gotham City devastada, pela perspectiva de Oz Cobb (interpretado de forma singular pelo BRILHANTE Colin Farrell), que acabou se envolvendo em uma situação que resultou não apenas na morte de um figurão da máfia dos Falcone, como também na entrada de Oz em uma jornada para tomar de assalto o submundo da cidade. No caminho, ele se unirá a Victor Aguilar (Rhenzy Feliz em uma fantástica atuação) e eles irão percorrer as diversas artimanhas, esquemas e manipulações em busca do topo.
Assim como a já mencionada inspiração, Pinguim é, antes de tudo, uma série criminal. Por mais que partilhe a mesma cidade com Robert “Battinson”, a presença do morcego é quase nula aqui. O foco principal é a imensidão de conflitos, desentendimentos e oportunidades de subterfúgio que existem no submundo criminal da cidade, ainda mais depois de um desastre. Em múltiplas ocasiões, eu esqueci que estávamos vendo um spin-off de filme de herói, pois não apenas sua identidade, apesar de ser parelha com o filme, é demasiadamente sóbria, como também as tramas são extremamente envolventes ao ponto que o espectador fica totalmente imerso naquela realidade.
Para os figurões do crime, o Batman é uma lenda urbana. Para nós, enquanto assistimos, também.
Antes de tudo, claro, os personagens
Senhor Genérico: Claro, é um crime falar de Pinguim sem falar de seus personagens. Primeiramente, eu tenho comigo que estamos falando do que pode ser uma das melhores encarnações do vilão. Cobb é ardiloso, inteligente, muito carismático e seus trejeitos estereotípicos de mafioso nova-iorquino criam uma aura que atrai o público e o faz simpatizar com ele, porém, suas garras (ou melhor, seu bico, pois um pinguim de bico aberto é TENEBROSO) revelam sua natureza.
Vivendo seguindo ideais na linha “Viver pouco como um rei, ou muito como um zé”, Cobb é imprevisível, combinado com uma capacidade de usar a lábia nas mais diversas situações, por sua vez criando uma experiência volátil e engajante de acompanhar.
Quando ele está em tela, é muito difícil não prestar total atenção. Victor é a complementação perfeita para o protagonista dessa história, criando uma relação de tutor-aprendiz que é absolutamente sensacional. Pelos olhos do rapaz temos a perspectiva “pé-no-chão” de como é difícil a vida em Gotham, enquanto vemos a transformação de um simples trombadinha em alguém muito importante. O episódio 3, que é focado em outros aspectos da sua vida, provém a quem está assistindo momentos muito impactantes e comoventes envolvendo a história de Vic.
Dito isso, existe uma personagem cuja presença consegue ser igualmente impactante (isso se não for maior) que a do personagem principal dessa história: a inacreditável Sofia Falcone.
Cristin Milioti provou nestes oito episódios que ela não apenas é uma atriz maravilhosa, como é tranquilamente uma merecedora de Emmy por esse papel. Sofia é complexa, tridimensional e talvez a parte mais interessante de toda a série.
Filha de Carmine Falcone (agora interpretado por Mark Strong, no lugar de John Turturro), ela retorna depois de uma década no Hospital Psiquiátrico Arkham para uma família que a recebe com temores, devido a sua fama como “A Carrasco”, assassina em série de mulheres. Sofia é importantíssima para a narrativa deste seriado e, quanto mais a vemos em ação e mais sabemos sobre seu passado, mais fascinante ela se torna.
Por Sofia conseguimos ver a história conturbada e obscura dos Falcones, ao mesmo tempo que entendemos mais sua psique. Apesar desta série não ter episódios que cheguem à importância de um “All Due Respect” ou “Ozymandias”, o quarto episódio da temporada, chamado “Cent’anni”, focado na história de Sofia, foi uma das coisas mais brilhantes, impactantes e formidáveis que eu vi em tela em MUITO TEMPO.
Max: Parte da graça da personagem da Sofia, inclusive, se dá ao fato de ela carregar consigo um comentário de gênero muito mais impactante e eficaz que, sei lá, Barbie. Sofia, antes de uma assassina cruel vista como sádica, é uma sobrevivente de uma série de abusos de gênero.
Em verdade, todos os homens dessa história, de uma maneira ou outra, se aproveitam e ferem alguma personagem feminina, e Sofia é vítima de opressões de gênero que perpassam pela clássica histeria feminina.
Seu corpo, em alguns momentos, é violado, suas liberdades são cerceadas, e muito de como funciona a personagem tem a ver com esse desejo de vingança pelas próprias feridas. Inclusive, um detalhe muito interessante sobre a caracterização dela: quando Sofia se torna a força motriz que precisava ser em um determinado ponto do roteiro, ela passa a utilizar trajes cada vez mais reveladores, expondo não seu corpo, mas as cicatrizes que adquiriu nesses muitos anos de Arkham.
Porém, Sofia não é a única que expressa esse desejo de pessoas como Helen Shaver de falar sobre opressões de gênero nessa história, porque, como ressaltei anteriormente, todos os homens dessa história machucarão mulheres em algum ponto.
Até mesmo Vic o fará, quando escolhe continuar servindo Cobb ao invés de ir embora viver uma vida pacata com sua namorada, partindo o coração da pobre coitada.
O próprio Oz eventualmente será catalisador de uma das cenas mais patéticas de toda a trama, quando tem uma reação violenta a uma decepção amorosa, por exemplo.
Muito dessa história tem a ver com essas opressões de gênero, mas é curioso que, enquanto Sofia vai servir como essa personificação da revanche para com os homens dessa história, ela também serve em alguns momentos como uma libertação para outras mulheres desse sistema que já era parte intrínseca da trama de The Batman.
Senhor Genérico: Com esses personagens, a história vai se movimentando: de um lado temos Oz e Vic em suas infinitas tramóias para enganar as máfias da cidade, do outro temos Sofia lidando com seus próprios demônios enquanto busca vingar a morte de seu irmão. Estas forças se chocam e todas as vezes que elas entram em conflito, é ouro puro na tela.
Além destes personagens, a série é rica de presenças secundárias que também deixam sua marca, com foco principal para a fantástica Deirde O'Connell, que interpreta Francis, mãe de Oz, mostrando uma relação extremamente complexa entre uma mãe que sofre demência e um filho que deseja muito impressioná-la.
Vale também destacar o magnânimo Clancy Brown, que dá vida a Sal Maroni, chefe de uma família rival aos Falcones que se envolve até o pescoço em todo o conflito.
A seleção de atores foi fenomenal e o roteiro permitiu que atuações estelares fossem possíveis em vários papeis diferentes.
Um aspecto que se destaca na experiência de assistir a série é o fato que, ao contrário de outras séries de crime famosas (como Breaking Bad ou o próprio The Sopranos), não existe uma sensação positiva, uma fantasia realizada ao ver Oz chegar ao topo.
É uma estrada de sofrimento, dor e catástrofe que utiliza dos laços e do carisma com o personagem para jogar o espectador contra a parede, fazendo-o perceber para quem realmente ele estava torcendo.
Max: aliás, aproveitando a deixa (e trazendo NOVAMENTE a história dos papéis de gêneros de seriado), Pinguim... meio que me soa como uma nova maneira de fazer dramas policiais. Veja, o gênero não estava exatamente morto, embora alguns de seus expoentes mais recentes, como Mindhunter ou True Detective, não alcançassem a grandeza de seus antecessores, mas Pinguim serve como um ar fresco ao gênero de dramas masculinos que há muito não se via. É irônico, pensando que isso ainda é “uma série do Batman”.
Aliás, sinto que The Penguin funciona perfeitamente como uma subversão ao aspecto mais problemático do gênero: as relações com as personagens femininas e o apelo a uma fantasia masculina.
O crime não é glamouroso, ele é cruel e patético ao mesmo tempo em vários momentos. Não existem maneiras de se romantizar Oswald Cobblepot como personagens como Walter White, Tony Soprano, Rust Cohle ou Thomas Shelby podem dar margem.
Inclusive, o personagem mais próximo de um chefão da máfia, a figura de Carmine Falcone nos flashbacks, atua como um péssimo gestor, tanto da família, quanto do crime.
Por falar em Falcone, o personagem funciona até mesmo como uma subversão de um tropo muito popular que é o do “personagem maníaco com mommy issues”.
Veja bem, muitos dos grandes assassinos da mídia estadunidense sempre tem suas condições explicadas por mães hiperprotetoras e abusivas. Sofia é o oposto, demonstrando ser uma pessoa extremamente saudável psicologicamente e alheia aos negócios da família até as ações do pai resultarem em sua prisão e, eventualmente, em sua sanguinolência e violência adquirida por anos de tortura.
DISCUSSÕES SOBRE ASPECTOS TÉCNICOS DA SÉRIE
Senhor Genérico: Por mais que Pinguim careça das sequências de ação icônicas de seu predecessor, a relação entre personagens compensa brilhantemente a ausência de lutas mais densas e complexas, dando mais um pé no chão nessa história de crime (e aproximando-a mais um pouco da grande inspiração disso tudo que é Sopranos) e fazendo momentos violentos serem muito mais intensos e surpreendentes.
A fotografia é sublime, Gotham é em seu cerne uma cidade multifacetada, com as suas diferenças sociais destacadas e cristalinas: os bairros mais pobres totalmente devastados, sujos, portando uma identidade visual semi-apocalíptica (que colegas que testemunharam as enchentes no Rio Grande do Sul ficaram bem afetados) de puro abandono, contrastado com a riqueza, beleza e “normalidade” das regiões mais ricas.
A estética obscura do filme também está presente aqui, mas ela é apenas uma das paletas que compõem a realidade daquele lugar. Olhar esses diferentes visuais pelas perspectivas civis (e criminosas) do cast dão uma atmosfera extremamente palpável e compreensível ao mundo que é colocado em tela.
A trilha sonora deste seriado também é magistral. O tema “Scherzo for a Flightless Bird” coloca em canção as nuances e aspectos profundos de Oz, enquanto a seleção de músicas licenciadas também se envolve de forma brilhante com momentos extremamente impactantes.
“Broken Belief”, de Bob Moses, é uma canção que combina o ambiente soturno daquela realidade com as tentativas de alcançar algum escapismo das pessoas que frequentam boates e consomem entorpecentes, tendo um ritmo forte e intenso, ao mesmo tempo que é igualmente sombria.
A melhor versão do Pinguim até hoje
Max: esse texto pediu por um pouco de leitura antiga da minha parte. A caracterização de Oz Cobb nessa série é brilhante, mas sentia que precisava aprender mais sobre o personagem antes de trazer uma análise mais aprofundada da caracterização dele.
Fato é que, em sua concepção, o Pinguim não era mais do que um vilão de quadrinhos qualquer. Um gangster qualquer, com uma personalidade caricata típica de... Quadrinhos do Batman.
Essa característica perdurou por anos, com, por exemplo, a interpretação cômica do saudoso Burgess Meredith (o lendário Mickey Goldmill, treinador de Rocky Balboa), mas muda com Pinguim Triunfante, de John Ostrander (o responsável por nada mais do que o Esquadrão Suicida).
Em Pinguim Triunfante, o personagem se torna uma personificação do capitalismo predatório neoliberal, literalmente um bandido do colarinho branco manipulando a cidade através da bolsa de valores.
Os anos 90 foram triunfais para esse rebranding do personagem, de fato, pois Pinguim Triunfante foi lançado em 92' para coincidir com o lançamento de, por exemplo, Batman Returns.
Aqui, Tim Burton se afastava da figura clássica do Pinguim e trazia ao mundo uma forma animalesca e asquerosa do personagem, criando um background de abandono parental e literalmente o colocando para comer lixo nos esgotos e comandar exércitos de pinguins que vivem no subsolo de Gotham.
O desejo por participar da aristocracia ainda existe na caracterização de Danny DeVito, mas, por mais que o personagem seja visto hoje como um clássico, não é como se ele fosse tão bem-sucedido quando o assunto é uma construção mais complexa da figura de Oz Cobb...
...O que é irônico, tendo em vista que a melhor adaptação dos quadrinhos do homem-morcego, Batman: The Animated Series, que bebe até engasgar da estética de Burton, ainda que mantendo os maneirismos das HQs, apresenta um Pinguim que tinha momentos de extrema complexidade.
O episódio “Birds of a Feather” da animação nos apresenta um Pinguim que ativamente está lutando para integrar essa alta sociedade que ele tanto almeja, apenas para ser totalmente desprezado por ela e acabar retornando à vida de criminoso.
Essa figura de um bandido que quer ser aceito pela aristocracia torna-se, inclusive, uma régua mestra no que diz respeito a próximas iterações do vilão.
Dito isso, há de se falar de um problema também intrínseco em quase todas essas versões do Pinguim.
O personagem já foi utilizado, em alguns momentos, como uma representação estereotípica e antissemita, tanto da parte de Tim Burton (pfft) quanto, curiosamente, da série animada da Arlequina, que, mesmo com todas as sensibilidades que ela tem (especialmente acerca da questão LGBTQIA+), não escapa dessas problemáticas. Mesmo que hoje as interpretações do Pinguim se afeiçoem muito mais as de um Al Capone, fugindo dos aspectos antissemitas do personagem.
E as versões mais interessantes do personagem na década passada também passam longe do problema, e inclusive parecem servir de alicerce para essa encarnação de Colin Farrell.
A primeira é a versão de Robin Lord Taylor e, sinceramente, muito do que forma a espinha dorsal da série da HBO parece derivar dessa versão do personagem.
Alguns exemplos são a personagem feminina com a qual o protagonista possui uma estranha simbiose e que se torna eventualmente sua principal rival pelo controle de Gotham; a mãe doente da qual ele tem que cuidar; até o jovem criminoso que Oz acaba por se afeiçoar (no caso da versão de Gotham, esse criminoso termina por ser Edward Nygma). Tudo vem de Gotham.
Mas, quando o assunto é modernizar o personagem, nada acerta mais que a versão da Rocksteady. O Penguim de Arkham City é cruel, sádico e até um pouco caricato, mas, quando se observa sua caracterização, não difere tanto do que a interpretação do Colin Farrell entrega.
Inclusive, a própria relação de Cobb com o submundo do crime de Gotham é parecida, mostrando-se um bandido muito mais “clássico”, com paixão pela extravagância do dinheiro, a boemia e tudo que ela atrai.
Ainda não possui a complexidade que somente uma adaptação tão inteiramente voltada ao personagem daria, mas a bravata já estava lá. Eu aceito.
Conclusão
Em suma, Pinguim é, antes de tudo, uma demonstração de que não apenas a DC, como o “Reeves-verso” do Batman, ainda tem muita coisa boa a oferecer, mesmo com o revés imenso em 2024 provocado por Coringa 2.
Atuações estelares, momentos impactantes e uma conclusão de se aplaudir, em admiração pela série e ódio por certos eventos, mostram que apesar da série ser o spin-off de um vilão secundário, ela não apenas consegue se sustentar bem em seus próprios pés, como também nos dá uma amostra há muito tempo perdida do êxtase e da tensão de testemunhar a vida de Tony Soprano, com um tempero extra que deixa a experiência muito melhor.
Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano).
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