No mundo atual, gostar de qualquer mídia indo além do consumo básico acaba mostrando uma pilha de problemas que só aumenta. Seja a cultura de massa que o capitalismo prega com um consumo sem descanso e burro para alienar e só alimentar tudo, seja com produções difíceis e que só pioram a vida de todo mundo envolvido por causa de decisões erradas ou até mesmo coisas problemáticas que podem afetar o jeito que você consome as coisas. Sem contar a diferença de você ser um consumidor e um criador e toda a visão diferente que ambos geram e isso acaba criando todo um debate sobre coisas que nos amamos: o que é importante considerar e ignorar nessa situação? E o jogo que me fez pensar em toda essa discussão por pelo menos três semanas é Travis Strikes Again, a volta de Suda51 a cadeira de diretor e escritor nos jogos e para vocês entenderem melhor tanto o texto quanto o jogo é necessário saber quem é ele e o nosso samurai weaboo favorito, Travis Touchdown.
Existem dois jeitos de explicar quem é Suda Goichi no mundo dos jogos para o público. Provavelmente existe um grupo lendo esse texto que durante a adolescência ou infância na era do PS3 e 360, assim como eu, estava bem no meio do nicho de jogos de ação curtindo Ninja Gaiden, Batman Arkham City, Metal Gear Rising e o que mais tinham a oferecer com toda certeza conhecem Lolipop Chainsaw ou Killer is Dead e Suda assim como o Tarantino foi usado como carimbo da capa para atrair público mesmo não sendo necessariamente o criador de nenhum desses dois jogos. E para o público que vai atrás de jogo japonês obscuro sabe muito bem que Suda foi um dos nomes que surgiu durante a época em que adventures japoneses começaram a se levar mais a sério e que ele é um dos nomes (se não o mais) influente no Level Design Punk, que é uma ideia de design que vai contra padrões de design em nome de algo mais experimental e focado no que o artista quer passar e Suda fez seu nome com o seu trabalho de vida que ao mesmo tempo é uma série: Kill The Past. Nos jogos dele que entram nessa categoria temos The Silver Case, Killer7, No More Heroes, Flower Sun And Rain e por aí vai. Todos abordando a mesma filosofia de um jeito de outro e principalmente a visão de Suda sobre os conceitos que esses jogos abordam e são definitivamente algo a se experimentar. Apesar dessa influência grande em um mercado de nicho, Suda ficou popular fora do seu país de origem com Killer7 e principalmente No More Heroes que deu todo esse pano de fundo para ele ser considerado um Tarantino japonês (assim como o cineasta é considerado o Takeshi Miike americano).
It's kill or be killed
No More Heroes é uma paródia sobre jogos, mais especificamente sobre quem consome esse tipo de jogo e vai evoluindo para algo a maior durante a campanha, mas vamos por partes. O jogo começou como uma forma da Nintendo de atrair outro público para o Wii e Suda com essa sugestão decidiu fazer uma das aberturas mais "metatextuais" possíveis para um jogo. Travis Touchdown é um otaku fracassado na casa dos 20 anos, sem dinheiro nenhum, sem namorada ou vida social e que vive em um quarto cheio de coleções com a sua gata e que tem um poster gigante do seu Mahou Shoujo favorito. Um dia, em um bar, ele encontra Sylvia Christel, uma agente da maior organização de assassinos do mundo que promete ficar uma noite na cama com Travis se ele virar o número um do rank de assassinos da sua cidade: Santa Destroy. E então com essa proposta ele pega o sabre de luz em formato de katana que ele comprou na Internet (assim como o player comprou um Wii e está entrando no personagem) e parte na sua missão de ser o número um.
O primeiro No More Heroes é um jogo que consegue ser divertido e inteligente na mesma quantidade. Ao mesmo tempo que quem joga pode ser igual Travis no começo e ver tudo como um grande anime sem nada pra se importar fora a ação e conquistar a waifu, é possível, também, ver todo o comentário que Suda fez sobre o jeito que consumimos mídias, o estado do vídeo game e como um consumo inteligente é necessário, afinal se Hideo Kojima consegue chorar três vezes assistindo Top Gun: Maverick sendo o diretor de Metal Gear Solid, qual o problema de gostar dessas coisas e reconhecer os problemas? Travis nos jogos passa por toda uma desconstrução de personagem e até mesmo é uma antítese de tudo que um protagonista de Character Action ou até mesmo de Hack and Slash no geral deveria ser. O que mais surpreende é que mesmo Travis sendo o ser humano mais escroto possível, ele conseguiu chegar em um nível de carisma e escrita inteligente que eu só acho impossível não se divertir horrores e gostar toda vez que ele faz alguma coisa. Sem contar que ele também consegue ser um personagem bem relacionável, mesmo não chegando no nível de ninguém dos Adventures do Suda. No geral, o primeiro No More Heroes é um clássico definitivo. Um jogo inteligente, divertido, com trilha sonora espetacular, personagens excêntricos na mesma medida que gostáveis/odiáveis, mas que Suda nunca tinha planejado em transformar em uma franquia, afinal ele trabalha mais com ideias compartilhadas do que sequências diretas (The Silver Case, Flower Sun And Rain, Kurayami Dance e The 25th Ward são exemplos disso). Mas como No More Heroes explodiu em um nível que a empresa dele, Grasshoper Manufacture, não esperava de jeito nenhum e sendo o homem de negócios dela, Suda teve que quebrar a sua vontade e acabou caindo na sua pior fase como artista e Travis Strikes Again é um desabafo do que foi essa época.
Em No More Heroes 2, Suda apenas fez os rascunhos de como seria o jogo e trabalhou como produtor, estando mais focado em outras oportunidades que ele conseguiu na indústria graças ao interesse da Ubisoft, Warner e EA no que ele poderia gerar junto de outras cabeças. Lolipop Chainsaw foi uma ideia que Suda teve e aplicou junto com o diretor James Gunn, o que era inicialmente um jogo de ação de humor negro com uma protagonista forte acabou virando por mandatos da empresa um jogo conhecido por ter uma adolescente atraente matando zumbis e que por motivos bobos consegue ser mais apelativo que Onechanbara (esse é um caso curioso que um dia eu faço uma matéria sobre) e que, por causa disso, Suda não teve tanto ânimo assim apesar de gostar do projeto. Como os dois últimos jogos do Suda ficaram conhecidos por esse lado violento misturado com anime misturado com uma direção e humor estilo Tarantino, quando pediram para Suda transformar Killer7 em um Hack and Slash como forma de sucessor espiritual, tivemos uma decepção de todo mundo que estava mais interessado no que Killer7 quer dizer e faz do que nos seus visuais. Killer Is Dead por conta do estigma que jogos japoneses e o próprio Suda ganhou, acabou tendo um modo Date Sim(simulador de relacionamento) e que termina em sexo com quase todo o elenco feminino. Quase todas as ideias mais originais do jogo foram cortadas para ele ser algo mais comercial e mesmo ainda tendo algumas características de Kill The Past, o jogo não conseguiu colocar o que Suda realmente queria em prática. E aí tivemos uma bomba que gerou até mesmo um What Happened, série mais do que recomendada para curiosos sobre a indústria e seus problemas.
Como o próprio vídeo diz, Shadow of Danmed era um projeto entre Suda51 e Shinji Mikami para um Survival Horror estilo Fatal Frame financiado pela EA e aos poucos foi indo disso para um Shooter estilo Resident Evil 4 misturado com drama de novela mexicana e piadas sexuais que iam contra qualquer intenção artística dos dois. O jogo ainda teve seu sucesso e taxa de fãs, mas Suda após essa época ficou cansado da indústria e se isolou, só ajudando os trabalhos da Grasshoper Manufacture (que nem foram tantos assim) por quase 10 anos. Assim como Travis após o final de No More Heroes 2, cansado de toda esse sistema ele sumiu. Até que algo o ele ter que atacar novamente e Travis Strikes Again vem com base nisso. Sendo um projeto entre a Grasshoper e a Devolver de um spin off de No More Heroes contando o que aconteceu com Travis após o final do segundo jogo. O nosso protagonista teria ido para o meio das florestas do Texas com a sua gata, voltando para o estado em que ele jogava vídeo game o dia todo e não fazia nada de muito relevante, deixando a sua esposa e filhos para trás. Mas como Tokio Morishima diz em The 25Th Ward: "O passado é algo que sempre vai atrás para te caçar". Badman, o pai de uma das assassinas do primeiro jogo consegue a localização de Travis e vai matar ele, mas no meio da luta os dois acabam ligando um dos consoles de Travis, o Death Drive, e param dentro de um dos seus jogos e descobrem que caso alguém zere os 6 jogos do console, essa pessoa terá seu desejo realizado, então Travis se junta com ele para reviver a sua filha.
Travis Strikes Again desconsiderando a sinopse se vende de um jeito curioso para um jogo do Suda mas até que esperado a algo com fortes influências ou respeito pelo mercado indie. Um jogo sobre visitar o passado da indústria, olhar tipos de jogos que tivemos nessa época enquanto é um jogo de ação isométrico com plataforma e com segmentos homenageando os Adventures de texto japoneses de computador como Omotesando Adventure ou The Portopia Serial Murder Case, usando a característica da Grasshoper de brincar com todo estilo e técnica visual que eles puderem no momento.
Outra coisa que o jogo faz para entrar nesse "senso" comum de indies mesmo sendo mais algo por amor é que ele realmente revive a época de revistas de jogos e guias, com um dos personagens introduzidos em Let It Die sendo um jornalista gamer que fez review do console e de tudo que Travis irá jogar e ainda te dá trapaças e dicas caso você esteja com dificuldade no jogo e só é algo adoravel.
Apesar de ser estranho alguém conhecido pela sua filosofia de vida ser sobre matar o passado fazer algo assim, tudo começa a fazer sentido bem rápido. Travis Strikes Again usa o personagem do Travis como uma forma do Suda expressar a sua visão de fã, o respeito e admiração que ele tem pelos jogos, as coisas que ele gosta, o quão impressionado ele fica com alguns trabalhos ao mesmo tempo que a personagem da Dr Juvenille para o diretor desabafar sobre o seu lado trabalhando na indústria e como de costume, vários dos NPCs que você encontram no jogo também servem só para ele falar dos gostos dele, opiniões e até mesmo conselhos de vida. Por conta do jeito que a escrita do Suda funciona, em um cenário assim você acaba vendo um lado muito mais pessoal dele como artista e pessoa e se você entrar na pira do jogo igual eu, vira uma conversa reflexiva que você sai por dias pensando nela e nenhum texto ou vídeo que eu possa fazer ainda faz jus a tudo que esse jogo me fez pensar. Então, por conta disso o foco desse texto vai ser mais alguns tópicos específicos que eu queria poder me expressar sobre e em um futuro eu com certeza vou tentar novamente falar sobre o jogo.
A ligação que jogos podem trazer
Para mim pelo menos é bem mais comum entrar em amor a primeira vista com algo do que com uma pessoa e Travis Strikes Again me fez ter esse sentimento na fase Golden Dragon GP, que fala de um jogo de corrida japonês que se passa em um universo que corredores desistiram da fórmula 1 e apostaram em uma corrida mais violenta e difícil de dominar que passa pela velocidade do som. Travis tem que enfrentar o protagonista desse jogo, um ex-lutador de sumô e guarda costas da yakuza que virou o melhor piloto desse universo e o jogo te joga nesse mundo com um cover em japonês de Hurt (até onde eu saiba) e fazendo referência a Otoko Oidon de Leiji Matsumoto. Nesse mundo você faz uma corrida, é chamado para limpar um lugar, coleta customizações para a sua moto e é chamado para correr novamente, é um looping bem simples mas que apresenta um desafio muito desgraçado e divertido no seu sistema de corrida. Ele acaba por se estender demais assim como todos os outros níveis do jogo, mas assim como o primeiro não é tanto ao ponto de me incomodar. Provavelmente a maioria das pessoas só passa por ele, acha divertido e ignora. Mas acabou sendo um dos meus favoritos justamente pelo que Suda decide trazer com Travis nessa fase: a admiração e semelhanças que temos com nossos ídolos, afinal, ninguém é muito diferente para ter que classifica-los em praticamente outro plano.
O jeito mais fácil de iniciar uma amizade é provavelmente com gosto semelhante. Quantas pessoas você não virou amigo no início só por vocês gostarem da mesma coisa ou terem interesses parecidos? A troca de recomendações, conversas sobre experiências faz tudo parte de um fluxo que a arte consegue trazer que é uma das melhores uniões que temos quando não consideramos todo o lado tóxico. Pessoas se unem por terem sido emocionadas de jeito parecido pela mesma coisa e esse sentimento pela obra vai criando uniões bem fortes, é algo bacana. Mas querendo ou não, o respeito que o consumidor tem pelo criador acaba criando uma barreira entre os dois como se um fosse um Deus incansável quando qualquer pessoa pode ser um artista. Até esse ponto na campanha, Travis vai tendo mais e mais admiração pela Juvenille e como ela conseguiu criar jogos tão criativos em um console tão único e que ainda conseguem ser bons vai surpreendendo mais ele. Suda se coloca de novo no lugar de alguém que não tem experiência e só admira de longe e é algo bem real, não é à toa que todo mundo tem o seu artista favorito que vai sempre te surpreendendo. Mas o que conecta os dois fora a criação do autor, é algo bem mais simples e até humano, não é necessariamente empatia mas sim gostos parecidos. Juvenille é fã de jogos de corrida japoneses, Travis até pilota uma Vespa SS 180 de Akira.
Travis Strikes Again por apresentar um lado mais pessoal do artista, humanizando e dando espaço para quem ele é cada vez mais mostrar que toda a admiração e conexão se juntam de maneira tão simples, para mim é só bem bonito. Quantos gostos semelhantes quem gosta dos jogos da Platinum não tem com o Hideki Kamiya, por exemplo? Como consumidores de arte, somos conectados por elas em todo tipo possível, então perceber que o artista é tão consumidor quanto nós sempre vai ser muito bom. Essa parte inclusive me lembra da iniciativa do Harada, diretor e produtor de Tekken, que convida todo tipo de famoso na indústria de jogos japoneses para beber e falar qualquer coisa sobre os gostos pessoais dele. Respeitem quem trabalha e os considere tão fãs quanto vocês são, é uma boa mensagem e que só mostra como Travis Strikes Again lida bem com essa dinâmica de visão de fã e criador sem uma sair por cima da outra ou sendo algo negativo.
Curando um Problema
Hotline Miami é algo especial. Um jogo de ação divertido que parece pegar a base do primeiro Postal e focar mais no lado cabeça da coisa enquanto apresenta desafio e diversão. Para mim, pelo menos, é o equivalente moderno de Shadow of The Colossus de jogo essencial sobre tema de violência e acho totalmente válido essa fama que o jogo tem com a sua qualidade e Travis Strikes Again por ser um projeto envolvendo a Devolver acaba liberando até mesmo o uso das músicas para a Grasshoper brincar e Suda se expressar sobre o jogo. Mas aí, entramos em um território que meio que vai contra o que o jogo quer passar no final de respeitar a visão do artista? Bem, explicando isso: durante a última missão, Travis para em uma base da CIA e enquanto vai explorando ele acaba achando uma máquina de arcade de Hotline Miami em que vemos ele conversando com o elenco do primeiro jogo e eles falam que Jacket está meio estranho, muito cansado, deprimido, praticamente depressivo sem querer fazer nada mas não se sabe o motivo e falam para Travis ter cuidado caso se depare com ele. E o que isso vai contra respeitar o autor?
Bem, quando o nosso protagonista encontra Jacket ele consegue tirá-lo da depressão o convidando para jogar, e eu meio que vejo tudo isso como um paralelo do que aconteceu de verdade com o Suda. Assim como os diálogos do Wataru e da Akari realmente parecem uma exposição pessoal (apesar de exagerada), considerando que o diretor sumiu durante todo esse tempo e voltou com um jogo pagando homenagem e respeito a jogos indie e falando muito de Hotline Miami, todo esse trecho me fez pensar que mesmo podendo ir contra o que Suda queria inicialmente passar, as vezes um bom jogo realmente te ajuda a sair de uma fase ruim e que isso provavelmente aconteceu com ele. Hotline Miami assim como revisitar sua carreira e os jogos que ele ama podem muito bem ter o motivado a voltar com jogos e No More Heroes com o Travis é provável o único jeito que ele poderia descrever essa experiência, mesmo sendo o "motivo" disso.
E como Travis Strikes Again é um jogo que permite o autor ser mais pessoal com quem tá experienciando tudo, eu posso falar por experiência própria que isso é uma verdade e acho que pelo menos uma parte de quem está lendo também. Vários jogos serviram para me ajudar em fases ruins, mas em específico quero falar de como Doom e outros jogos mecanicamente difíceis acabaram sendo remédios de ansiedade e anti depressivo para mim na pandemia. 2020 foi bem complicado para mim (para todos no geral, sendo sincero) e no momento que eu mais estava quase enlouquecendo eu decidi zerar Doom 2016 e foi uma baita ideia. Mesmo a franquia sendo conhecida pela dificuldade, eu sempre me diverti. E desafio bem pensado geralmente me faz pensar direito, então Doom, Pathologic, Shin Megami Tensei e outros jogos servem muito bem para me concentrar e fazer pensar melhor quando eu estou em pelo menos um estado bom para jogar. E durante minha vida toda teve momentos assim, jogos conseguiam servir tanto de distração, passatempo, reflexão e até ajuda para mim na mesma medida que qualquer mídia ou ajuda real consegue fazer. É algo que conecta as pessoas como eu já disse, então era esperado que uma franquia como Yakuza que se preocupa tanto em mostrar como é essencial ser uma boa pessoa me fazer repensar no que faço e mudar meu jeito. Até mesmo outros jogos do Suda fizeram isso comigo, tanto que The Silver Case é meu terceiro jogo favorito (apesar de eu achar que outro jogo dele pode tirá-lo do posto).
Mas enfim, jogos são algo especial e Travis Strikes Again retrata como eles são especiais de todo jeito possível. Nessa mesma parte temos o momento mais reflexivo entre Travis e a Dra. Juvenille sobre o que fazer com o passado e o mundo no geral e toda essa base que mostrar como um jogo igual Hotline Miami pode te tirar de uma fase depressiva oferece para o conflito final é ótima. É um dos momentos que dá para ter várias interpretações diferentes e isso acaba sendo uma das graças, mesmo as vezes podendo afetar a visão e vontades do autor. É algo bonito de qualquer jeito, mesmo não tendo jogado Hotline Miami 2 ainda acho bom demais ver o uso de toda mitologia e estilo do jogo durante as fases que Travis visita. Se ficarem mais curiosos sobre a parte de desenvolvimento do protagonista ao invés de unicamente a parte filosófica, recomendo a série de vídeos analisando o Travis do Senhor Genérico que são vídeos que realmente fazem jus ao personagem e ao trabalho de escrita do Suda nesse aspecto.
Matando o passado de jeito literal.
Durante a carreira do Suda, vemos o que matar o passado representa para vários personagens e até mesmo como um conceito mais social e político. Mas Travis Strikes Again vai um pouco além e mostra isso na prática com o próprio diretor. O mundo de Shadow of The Danmed se inicia com Travis achando que seria outro jogo, você até recebe uma revista falando sobre um clone de Dragon Quest sendo desenvolvido para mostrar como inicialmente era uma proposta totalmente diferente. E a abertura meio que faz um retcon e sequência meio esquisita que faz a arma do protagonista virar um espírito de vingança meio Kamen Rider com 8 corações. É algo bem legal e Travis até diz que é fã do jogo, mas a metáfora fica bem óbvia e fica muito mais complexa quando você pensa nessa fase como uma forma de Suda "matar" o passado na indústria de vídeo game. A produção do jogo original foi conturbada, fez Suda desistir da indústria e normalmente qualquer um pensaria que ele tem raiva do jogo ou dessa época, tem até mesmo uma fase xingando corporativismo em um momento falando sobre a frustração de trabalhos que nem mesmo conseguiram ser lançados.
Mas quando você chega no momento de confrontar toda essa época, invés de uma visão rancorosa e deprimente, Travis Strikes Again conseguiu me surpreender com sua dose de respeito com vídeo games no geral. Mesmo te fazendo questionar o capitalismo e mostrar todo o lado escroto de produção na própria visão de alguém que sofreu com isso, o respeito pela arte é o que se mantém e importa no fim das contas. Pode ser algo que vai além de respeito e virar algo imoral como as várias tentativas falhas do Watsuki (mangaka de Rurouni Kenshin) de conseguir mais dinheiro da sua obra após ser preso, mas aí já são casos específicos. Suda pode até ter vontade de quebrar todo corporativista como um Punk normalmente teria, mas o jeito que ele mata o passado para mim é uma ótima aplicação real dos conceitos que ele sempre explorou.
Apesar de Kill The Past parecer ser algo mais opressor e deprimente, o que esses jogos querem de verdade é o melhor do jogador. Que ele se sinta bem, consiga passar da fase ruim e sempre tenta ser gentil com ele quando possível. Algo simples mas um ótimo exemplo é que o primeiro puzzle de Flower Sun And Rain é o jogo perguntando o seu aniversário e no final, pós uma crise de identidade a resposta é justamente a data que você colocou. Matar o passado, na prática, é uma forma de você lidar com fases ruins sem ser afetado por isso. O passado e as coisas que ele gera não precisam dominar ou afetar você sempre. Travis Strikes Again é um confronto com o passado e um jeito de se resolver com ele. Sair de uma bolha que você cria por conta de traumas e ir de cabeça solta (literalmente) para o mundo ao seu redor. Se todos conseguirmos lidar com os nossos problemas de um bom jeito, é possível sim esperar por um futuro melhor e tê-lo. Suda tomando o jogo que o fez desistir e fazendo uma homenagem enquanto se resolve com ele sem nenhum sinal de mágoa. Isso nada mais é do que ele matando o passado. É por conta disso que Travis Strikes Again é um jogo que se recomenda jogar somente quando você consome as outras obras dele e sabe mais do que aconteceu no pano de fundo, bate tudo mais forte. Eu ainda poderia falar de como nos Adventures, o arco do Kamui Uehara, a Juliet de Lolipop Chainsaw e outras coisas acabam entrando nesse papo de matar o passado de jeito inteligente mas esse provavelmente é o mais relevante dentro do jogo. Suda, assim como Travis e outros personagens dos seus jogos, conseguiu matar o passado e olhar para o presente/futuro de jeito mais que satisfatório.
Travis Strikes Again quase tirou The Silver Case da minha lista de jogos favoritos e eu ainda nem pensei o suficiente nele. É um jogo divertido mesmo exagerando um pouco e que consegue ser artisticamente muito denso até na questão puramente visual do negócio e garanto que visitar o trabalho do Suda e jogar ele sendo tão fã de vídeo game quanto qualquer um pode ser, vai ser uma experiência mágica e espero que pelo menos esse pouco aprofundamento em alguns temas que eu fiz pode convencer mais pessoas a tentar jogar.
Punk is not Dead.
Simplesmente excelente, Poda. Me fez ter vontade de Jogar todos os jogos do Suda. Obrigado🤧 Amo como você se coloca no texto.É quase como se conversássemos por ele. Abraços, querido, Fico feliz que agora faz parte da redação do GDH💜