"Eles não vão nos controlar. Eles não vão nos dividir. Nós lutaremos. Nós lutaremos ou morreremos"
UMA RETROSPECTIVA HYLIANA
Meu primeiro videogame foi um Super Nintendo, por volta de 2005. A foto à esquerda é do dia em que ganhei o console, que só tinha um cartucho, o magnífico Super Mario World. A maioria dos jogos com os quais tive contato nessa época, principalmente do gênero plataforma, eram alugados, e não havia muita opção de títulos na locadora perto de casa. Desenvolvi um forte amor pelo meu Super Nintendo e pelo subsequente (tardio) Nintendo 64, que ainda tenho até hoje. Na verdade, eu nem sabia da existência de Doom 64 ou de qualquer outro pioneiro do gênero boomer shooter no console de 64 bits da Nintendo.
Infelizmente, optar por um videogame não era uma opção, já que as limitadas condições financeiras dos meus pais só me permitiram ter meu primeiro computador, um netbook da Acer, aos 15 anos. Em 2012, era bastante comum pessoas da minha idade terem um computador decente, principalmente para fins de estudo. Meu netbook era tão limitado que ainda me lembro de tentar rodar as primeiras versões de League of Legends a apenas 10 fps e logo passei a me afundar nos emuladores de consoles antigos, enquanto meus amigos passavam noites se divertindo com o MOBA da Riot e outros jogos clássicos de LAN House, como CS 1.6, Dota e MU.
A questão é que, tendo abraçado os consoles como o único refúgio disponível e com a acessibilidade majoritariamente conferida devido à pirataria no Nintendo Wii e Xbox 360, meu contato com o gênero FPS atingiu seu ápice com as franquias mainstream como Halo, Call of Duty e Battlefield, além de jogos não tão populares na comunidade do Wii, como The Conduit (um dos meus favoritos) e Medal of Honor Airborne. Até este ponto, eu nunca havia me interessado por qualquer título relacionado aos clássicos Doom, Wolfenstein ou Quake, mesmo que os jogos retrôs frequentemente aparecessem nos consoles mencionados.
Me peguei fazendo essa retrospectiva para tentar encontrar justificativas para o motivo pelo qual nunca havia entrado em contato sequer com a nomenclatura 'boomer shooter'. Se a questão não era o hardware, talvez fosse a falta de contato com pessoas que estivessem envolvidas com jogos desse gênero. Lembro que, quando me deparei com o termo recentemente, comecei a perguntar aos meus amigos de infância se eles sabiam do que se tratava o 'boomer shooter'. Todas as respostas foram negativas. Bingo! Acho que já encontramos nossa resposta.
Mas mesmo que eu tivesse desenvolvido interesse por esses jogos no passado, acredito que teria sido muito difícil experimentar as mesmas sensações que pude sentir recentemente. Hoje, em 2023, apenas alguns anos depois de ter um computador minimamente decente (o suficiente para rodar jogos menos exigentes), resolvi abrir a biblioteca de jogos do Marco Ángel, um dos meus amigos que é aficionado por boomer shooters, quando me deparei com Sprawl, um lançamento deste ano desenvolvido pelo estúdio Rogue Games Inc.
“Por que não experimentar? Na pior das hipóteses eu desinstalo e vida que segue.”
Foi assim que eu conheci o jogo que alugou um apartamento na minha cabeça, e me fez acreditar em como a experiência de explodir cabeças ao som de músicas frenéticas, com um mouse e teclado, olhando para o monitor a poucos centímetros de distância do meu rosto, é incrível e única. Falarei um pouco a seguir sobre esse boomer shooter, que não foi muito bem recebido pela comunidade, mas que me fez apaixonar pelo gênero.
GHOST IN THE SHELL, REVOLUÇÃO POPULAR E ANTIFASCISMO
Em Sprawl, jogamos como Seven, uma super soldado assassina que servia às forças governamentais e agora está sendo perseguida após prestar seus serviços ao governo. Uma voz misteriosa em sua cabeça, que se identifica como FATHER, se propõe a guiá-la no enfrentamento ao governo militar fascista JUNTA, a fim de libertar o que resta da humanidade das forças robóticas e autoritárias que assolam a cidade.
Essa foi a primeira característica que me chamou a atenção quando comecei a jogar: os elementos visuais e sonoros. A megalópole cyberpunk infinita, decadente e corroída, é muito bem projetada, e as referências a Ghost in the Shell são evidentes, mesmo para quem não tem muito contato com a animação japonesa. A trilha sonora, que incorpora elementos de breakcore, drum and bass e o famoso metal, traz um tom nostálgico, tanto com os vocais sublimes usados como pano de fundo em Ghost in the Shell quanto nos jogos clássicos que agora admiro à distância (Quake, Doom, Wolfenstein).
É impossível não traçar um paralelo entre o cenário da luta contra SIX "Reaper" (01:30 do vídeo abaixo) em Sprawl e o cenário icônico do duelo protagonizado por Motoko Kusanagi em uma lâmina d'água que reflete os arranha-céus de New Port City.
Consequentemente, para jogadores como eu, que sequer sabiam nomear termos como 'weapon swap', 'movement shooter' ou 'slow down time', Sprawl é receptivo e introduz suavemente as armas, inimigos e mecânicas disponíveis (talvez até de forma excessivamente introdutória, para alguns).
Nossa personagem dispõe de um chip cibernético neural chamado "Icarus", que permite a utilização do botão direito do mouse para pausar o tempo por alguns segundos e destacar os pontos fracos dos inimigos. Essa característica permite traçar estratégias em tempo real, dando ao jogador tempo para pensar no tempo de recarga das armas, no dano e na eficácia, além de analisar as possibilidades de combate mais seguras. A mecânica se assemelha muito ao que temos em F.E.A.R., e eu não poderia imaginar a insanidade que seria administrar as sete armas disponíveis no jogo com diferentes tempos de recarga, dano e eficácia sem esse recurso. Acredito que, assim como nos outros boomer shooters, essa atenção meticulosa não seja necessária para completar o jogo, mas há uma sensação indescritível em tentar dominar o sistema que nos é apresentado.
Pude sentir pela primeira vez na pele a euforia, a adrenalina e o prazer da progressão através do caos, na troca de armas, cálculo de dano, tempo de recarregamento passivo, pausar o tempo e realizar ações ao som de músicas frenéticas e muito bem construídas. Meu coração palpitava ao final de cada sequência, e eu só conseguia pensar em como melhorar minha performance fase após fase.
Como jornalista e entusiasta de jogos, é comum ouvir que um dos maiores problemas dos boomer shooters é não saber quando e como terminar, mas Sprawl oferece três níveis tão bem construídos que passam num piscar de olhos. O jogo se desenvolve de forma sólida até seu ápice, terminando no momento certo e com um desfecho gratificante.
Ao mesmo tempo, Sprawl possui alguns problemas técnicos perceptíveis. Encontrei um bug duas vezes que me obrigou a reiniciar o jogo, mas é evidente o esforço no desenvolvimento para oferecer uma experiência polida com começo, meio e fim.
Apesar de ser relativamente superficial, a história de Seven cativa ao nos envolver na luta contra forças opressoras, mesmo sem termos informações detalhadas sobre elas na narrativa do jogo. No entanto, é possível encontrar QR codes espalhados pelos mapas que funcionam como uma espécie de registro de texto, transformando nosso smartphone em um dispositivo de acesso a informações privadas que contextualizam melhor os eventos do jogo.
O fato de lutarmos contra máquinas programadas para oprimir os seres humanos nos faz pensar facilmente nas forças militarizadas a serviço de governos que treinam e capacitam seus policiais a usarem da força desmedida contra a população. É muito fácil traçar um paralelo com esse cenário para quem vive em centros urbanos subdesenvolvidos, pois, inicialmente, essa força policial, que hoje é sinônimo de opressão contra negros e minorias, pode facilmente aumentar o nível de violência se receber o aval de um governo desprovido de princípios de liberdade.
É assustador imaginar que esse cenário de aumento da violência policial está crescendo a cada dia mais em nosso país, o que de certa forma transforma os princípios revolucionários presentes neste simples boomer shooter em um aviso, mas sem abrir mão de ser um refúgio prazeroso em que podemos tomar as rédeas e lutar pela humanidade, desmantelando o governo facho de Sprawl de dentro para fora, literalmente na bala.
Hoje, consigo entender quando me dizem que o cenário do boomer shooter é um espaço de inclusão e palco para discussões identitárias, e esse é um dos principais motivos pelos quais mal posso esperar para me envolver com outros títulos do gênero. Da mesma forma que antes julgava a incapacidade do gênero de terror em utilizar seus simbolismos para contar histórias intrigantes que envolvem traumas e medos humanos, acredito que o boomer shooter seja um campo inexplorado de boas histórias que ainda não experimentei.
CONCLUSÃO
É impossível para mim não recomendar Sprawl, mesmo sabendo que existem experiências que são mais bem recebidas pela comunidade de boomer shooter. Em termos técnicos, temos um jogo curtíssimo com um razoável 'gun feel', uma boa trilha sonora e uma boa história. Eu poderia encerrar por aqui, mas algo nesse jogo fez com que eu não me limitasse ao reducionismo crítico. Por que não trazer uma dimensão social para essa experiência que me proporcionou tanto aprendizado?
Nós somos moldados por realidades, contextos sociais, referências, bagagens, traumas e uma infinidade de outros fatores que nos tornam diferentes uns dos outros. Talvez você nunca tenha tido contato com um JRPG, uma visual novel, um jogo de terror, um indie obscuro que poucos ouviram falar, ou um aclamado boomer shooter, assim como eu. No entanto, toda essa experiência, além de tudo, me serviu como um lembrete para continuar abrindo meu coração para obras e gêneros que não fazem parte do meu cotidiano. Quem sabe qual será a próxima vez que eu (ou você) poderá acabar se surpreendendo assim, explodindo (ficticiamente) a cabeça de milicianos?
Espero que minha experiência lhe sirva como exemplo para perguntar aos seus amigos o que eles jogaram de novidade, compartilhar experiências ou buscar conhecimento, como diria o filósofo ET Bilu! Existe uma infinidade de jogos esperando para serem desvendados, e se precisar de indicações, conte sempre com a gente.
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