Iniciei minha análise anterior, aquela bem woke de Star Wars: Outlaws, comentando de uma conversa com amigos sobre como nossas análises de obras com alguma ligação íntima e pessoal conosco podem ser enviesadas. Aqui, hoje, repito o ato. Mas, sinceramente, por razões bem diferentes. Minha relação com as histórias das guerras estelares era antiga e intensa na minha vida, mas isso não ocorre com Coralina.
Na verdade, nem sequer sou muito fã do primeiro jogo. Talvez a culpa seja minha pelas expectativas que criei na época, ou talvez a estrutura de seu surrealismo introspectivo e não linear numa curta duração tenha me tirado dos trilhos, mesmo que a escrita me mantivesse em pé. Sempre tive a impressão de que Coralina queria ser mais, muito mais do que conseguia. Arte impecável e agradável, atmosfera e textos cativantes, mas pequeno dentro de sua ambição e inconclusivo com os seus próprios arcos.
Eu queria ter sentido algo mais com ele, mas não aconteceu. Naquele momento, a Maya que existia antes começar o primeiro jogo era uma garota muito parecida com aquela que o terminou. Mas no fim de tudo, uma coisa estava super clara ali: Gabriel Maki, o desenvolvedor, amava muito o projeto e cada uma das palavras escritas e publicadas naquele nele, sua participação no podcast do portal Controles Voadores só deixou isso ainda mais claro pra mim.
Meses depois, por um acaso, conheci Gab Maki, nos tornamos amigas e começamos a conviver um pouco mais. É meio engraçado pensar que nos aproximamos um pouco mais porque ambas cursávamos Direito (ainda que em faculdades e cidades diferentes), e esta relação talvez seja umas das poucas coisas boas que aquele período me trouxe. Fiquei... admirada. A paixão pelo mundo de Coralina era enorme e isso foi tão lindo de se observar.
O desenvolvimento de a Memory Tale, sua sequência, era confirmado e exposto nos créditos. Quem sabe, a segunda parte da história poderia ser esse algo mais. É natural, né. Pessoas evoluem, projetos evoluem. Gostos mudam. MUITA coisa acontece em um ano e meio. Memórias vem e vão. Graças a minha amizade com Maki, tive a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento do novo projeto por meses, testar algumas builds e opinar aqui e ali.
Ver ele escrever e descrever cada novo pedaço foi uma experiência tão legal, e tudo isso desconsiderando o quão mais interessante a Memory Tale parecia ser — fruto da maior experiência com RPG Maker e maior segurança com as palavras. Desenvolvi um carinho enorme pela sequência de Coralina uns bons meses antes de seu lançamento, mas isso quase que exclusivamente graças a minha amizade com seu criador.
O Game Design Hub recebeu uma chave antecipada de Coralina: a Memory Tale para cobertura, assim como eu também ganhei uma para minha conta pessoal. Agradeço muito a Gabriel Maki e ZNT Productions pela oportunidade, mas é engraçadinho porque eu meio que sabia que esse dia chegaria. O dia que eu teria que escrever e publicar a análise de um jogo produzido por uma pessoa querida.
Também admito que é um tanto curioso que isso aconteça justo com um jogo como a Memory Tale: temos diante de nós uma história sobre sonhos, coletividade, companheirismo, amizade e amor. Uma história sobre registros e lembranças, fotografias e cartas. Solidão. Autoconhecimento. Abandono e criação. Cartas e estrelas.
No primeiro jogo, Coralina ficou presa no Limbo logo após perder seus amigos em circunstâncias misteriosas, ela então parte para investigar o novo mundo e o destino de seus amigos com a ajuda de um "Corvo", apenas para descobrir que é capaz de reviver memórias alheias e que foi posta num conflito muito maior que ela mesma. Em a Memory Tale, Cora continua presa no Limbo, mas agora na companhia indesejada de uma alquimista de cabelo roxo conhecida como Cometa, unidas pela missão de encontrar e derrotar Flamel, o criador do mundo agora pisam.
Enquanto o primeiro jogo não consegue compor a grandiosidade de seu próprio universo, a Memory Tale escolhe abraçar o mundanismo de um mundo mágico em crise. Estamos no meio de um grande conflito, as garotas são ambas peças fundamentais para sua resolução, mas ainda são pessoas com desejos, sonhos e guerras pessoais. O caminho de uma linhagem quase predestinada em guerras e sob os passos de sombras antigas talvez tenham impedido o florescer de uma vida inteira.
Uma passagem tomada pela solidão. Um trajeto sem reconhecer o próprio nome, os próprios gostos, a própria doçura. Sem entender, nem por um breve momento, o valor de alguma companhia, do amor. Coralina e Cometa são, literalmente, de mundos diferentes. Cresceram em contextos distantes, com pessoas e expectativas distintas, mas nunca foram opostas.
Jamais entrarei em detalhes sobre esse assunto de forma pública, mas por consequência de problemas do passado, alguns distantes e outros não, sou uma pessoa com muita dificuldade de realmente aceitar alguma companhia como verdadeira, de confiar plenamente nas palavras que algumas pessoas maravilhosas dirigem a mim. Além disso, 2024 parece estar fazendo esforço para me dar rasteiras, eu nunca estive tão ansiosa.
Amigos que eu via sempre hoje estão a dezenas de horas de distância de mim. Sinto a falta deles todos os dias. Só que talvez essa não seja a impressão que os deixei: eu também afastei, me prendi a crises que me impediram e me impedem reabrir portas e deixei a distância física assumir um grande espaço entre nós. Eu sinto falta do carinho presente nos meus relacionamentos anteriores. Por vezes, me sinto muito sozinha e me deixo levar.
Parte disso são coisas que eu mesma coloco na minha cabeça enquanto tento enfrentar as minhas próprias guerras. Durante toda a minha experiência com Coralina: a Memory Tale, me senti uma só com Cometa. Sua jornada é, em partes, a minha. Talvez tudo o que precisássemos fosse abertura, permitir que alguém, ou uns "alguéns", nos conhecesse como de fato somos.
Sempre tive contatos e muita gente em minha volta, mas me sentia verdadeiramente segura com poucas. A maior parte das minhas relações atuais estarem separadas por uma tela torna isso um pouco mais difícil de lidar. Cometa tem as suas razões, assim como eu tenho as minhas, mas no fim, ambas conseguimos.
É natural que jornadas ou acontecimentos específicos unam pessoas. Me tornei muito mais próxima de Gabriel Morais, meu editor-chefe, desde que começamos a trabalhar juntes no editorial. Maki e eu nos aproximamos graças a joguinhos e um curso duvidoso que nem eu e nem ele queríamos de fato estar fazendo. Meus textos, trouxeram pessoas tão queridas pra minha vida, até que, eventualmente, também conheci a minha Coralina.
Não tenho muitas memórias fotografadas, mas guardo as poucas com um carinho enorme. Queria conseguir ver meus antigos amigos com mais frequência do que de ano em ano, queria ver encontrar as pessoas que eu amo com mais frequência. Mantenho cartas e faço arte sobre nós para manter as nossas lembranças vivas.
Eu não posso revivê-las como Cora, mas consigo guardá-las em minha memória. Podemos criar novas histórias quando unidos novamente, mesmo que essa reunião apenas seja possível após a morte. Se respiro hoje, se sou quem sou, se escrevo como escrevo, é tudo graças às pessoas que me redoaram conforme os anos.
Amei pessoas no passado, amei e amo neste ano. Eu nunca consegui nada sozinha e acho que nunca vou conseguir nada sozinha. Nós somos animais conduzidos por sentimentos construídos em comunidade. Afeto é um fio condutor. Parafraseando as palavras de Maki, se eu pudesse prender um tempo numa garrafa para passar a eternidade com você, eu faria.
Coralina: a Memory Tale é um jogo curto que usa de sua grande escala para criar relações pessoais com o ato de coletar melancias para os outros. Estruturalmente mais complexo e engajante que seu predecessor diante de uma maior exploração das possibilidades de uma engine como o RPG Maker, mas muito mais tocante como uma história sobre liberdade e amor.
Para Gabriel Maki e todas as pessoas queridas que me fazem tentar ser alguém melhor, obrigada.
Agradecemos gentilmente à ZNT Productions pelo envio de chave para análise de Coralina: a Memory Tale.
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