Não sorria. Lembre-se de que um dia o narrador que conta a sua história também chegará ao fim.
Uma das coisas mais angustiantes que podemos passar é não sabermos o momento de finalizar uma história que deveria acabar, ou o extremo contrário, quando agoniamos para tentar pular algumas páginas a fim de descobrir o que vem pela frente nas nossas vidas. Ambas as situações refletem o quanto nós gostaríamos de ter o poder em nossas mãos para escrever e reescrever o destino, se assim pudéssemos fazê-lo.
Saviorless abraça com todas as forças essa proposta de reescrever o destino, sendo o primeiro jogo independente cubano a colaborar com uma editora internacional. Desenvolvido pela Empty Head Games, o projeto se iniciou com duas principais figuras: o artista Josuhe Pagliery e o programador Johann Armenteros.
Após aproximadamente 8 anos de um conturbado desenvolvimento, o título passou por rejeição de marcas, saída de membros importantes, restrições financeiras injustas e um histórico de barreiras sociais e políticas enfrentadas pelos desenvolvedores cubanos até ser publicado pela editora francesa Dear Villagers.
Podemos acompanhar em Saviorless uma história que fala justamente acerca da disputa pelo poder sobre a realidade entre diversos personagens, com jogabilidade em plataforma 2D e ambientado em um mundo de fantasia sombrio. O título também é repleto de artes desenhadas à mão e uma trilha sonora que nos embala e nos deixa estonteados constantemente. Mas Saviorless é muito mais do que um jogo independente. Ele é um sinal de resistência e um incentivo para não deixarmos histórias incompletas para trás.
Observação: o texto a seguir contém spoilers de Saviorless.
UM CONTO DE FANTASIA, MAS QUEM TEM O PODER DE MUDAR A NARRATIVA?
Nosso literal protagonista se chama Antar, e assim o é dentro de uma história contada pelos Narradores, uma espécie de entidade personificada em um senhor de nome Tobias. Sua função é contar uma história que já está escrita sobre Antar, uma criança curiosa que está em busca de chegar até as Ilhas Sorridentes para se tornar um Salvador, mas seu trajeto é carregado de hostilidade destilada por um caçador impiedoso chamado Nento, que também quer ter o controle da história na qual Antar é o protagonista.
A mecânica do jogo é simples. Em capítulos que se misturam de maneira alinear, ora controlamos Antar em fases de plataforma, resolvendo puzzles de alavanca e desviando dos inimigos, ora controlamos Nento, o que adiciona a mecânica de combate. O terceiro elemento de gameplay permite que utilizemos um dash horizontal em determinados momentos.
Por onde passamos, sempre há um rastro de destruição, violência e morte causado por Nento. O detalhismo das artes impacta e a sensação de desespero é iminente, mas mesmo com tanta destruição é possível admirar ambientes de tirar o fôlego. A trilha sonora é lúgubre, carregada pela melancolia do piano, mas é pontual em acenar momentos chave como o início da jornada, a solidão, o fervor do combate ou até mesmo a bizarrice de diversas criaturas que compõem a fauna de Saviorless.
O protagonismo de Antar, na sua busca pelas Ilhas Sorridentes, flerta com a definição atrelada a apenas ser o personagem principal da história que protagoniza, não pela sua capacidade de tomar escolhas, mas pelo holofote que o gênero literário da fantasia sombria lhe confere em uma história escrita por outra pessoa, e que aparenta não ter fim.
Inclusive, no decorrer de Saviorless, essa metalinguagem do protagonismo se estende. Os papeis se invertem com a ameaça de novos “protagonistas”, acrescentando ou retirando essa perspectiva de influência sobre o que está sendo narrado.
Em situações pontuais, a obra nos coloca até mesmo na pele do próprio vilão Nento, cumprindo com maestria a proposta de nos fazer perceber que, para o bem ou para o mal, alterar a realidade é trazer o protagonismo para si, seja lá quem estivermos controlando. Mas independente de quem está por trás da narrativa, toda história precisa encontrar o seu final.
NA NOITE TERRÍVEL, SUBSTÂNCIA NATURAL DE TODAS AS NOITES
Confrontar essa perspectiva alicerçada do protagonismo, oferecendo e retirando o poder de ditar os rumos da narrativa se estende até mesmo para a nossa decisão de recolher ou não todos os colecionáveis do jogo. É certo que toda história precisa de um fim, mas para Saviorless, a história só pode chegar ao final se ela estiver completa.
É por isso que em cada uma das 5 fases, Antar deve coletar 6 páginas espalhadas para entregá-las ao Cronista, desbloqueando um dois colecionáveis que afetam diretamente o “final verdadeiro” do jogo, o que não é muito difícil de se fazer, mas, como toda a metalinguagem de Saviorless, deixar a história “incompleta” traz uma lição de muito peso.
Escolher deixar a crônica de Antar incompleta gera um conflito eterno entre o protagonista e as infinitas versões de si que ficaram para trás e que tentam chegar ao final da história, o que deixa um gosto amargo quando a tela de créditos começa a subir. Apesar de ser um ótimo gancho para a rejogabilidade da obra, somos constantemente lembrados pelo cronista Dasein que deixar as páginas para trás significa deixar a história sem o seu verdadeiro final, e ele nos oferece, inclusive, a possibilidade de apagar a nossa história (progresso) para encontrar as páginas perdidas.
Consegue imaginar algum momento em que você deixou de fazer algo, tendo a consciência de que se arrependeria profundamente no futuro? Fernando Pessoa, em sua obra édita, sim:
"(...) O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver..." (Na noite terrível, substância natural de todas as noites)
Eu adoro esse poema de Pessoa, e acredito que se encaixa muito bem com a metalinguagem trazida por Saviorless caso deixemos a jornada de Antar incompleta. Ao pularmos etapas ou enterrarmos uma escolha da qual sabemos que vamos nos arrepender no futuro, acabamos criando um monstro poderoso que se alimenta de todas essas expectativas, impedindo que a história chegue ao seu verdadeiro final. E o pior de tudo, a obra nos coloca no papel desse monstro que esmaga impiedosamente todas as versões de Antar que tentam encontrar o fim da sua jornada.
Em contrapartida, tão forte quanto a incompletude da jornada de Antar, caso tenhamos paciência e o esmo de fornecer o necessário para completar a sua história, Saviorless prepara outro soco no estômago ao lembrar que por pequena ou majestosa que seja, toda história e toda vida um dia encontrará o seu fim.
O lamento do narrador que não mais o será com o final da jornada de Antar é um forte lembrete para que tenhamos a paciência de ler cada linha e aproveitar cada capítulo até a última página de nossos livros.
CONCLUSÃO
Saviorless é corajoso, porque enfrenta em sua essência o determinismo responsável por pregar que alguém ou alguma entidade seja capaz de controlar o nosso destino. Desde a sua concepção, que navega contra a maré do imperialismo e do cerceamento injusto contra os cubanos, os desenvolvedores de Saviorless se afirmam, mesmo com todas as dificuldades, como artistas que sonham em terem a sua obra deixando uma marca no mundo.
Para mim, Saviorless é um espelho que busca refletir todo ser humano que almeja a própria realização, que precisa de forças para enfrentar o mais impiedoso dos caçadores e até mesmo aqueles que dizem serem capazes de controlar a narrativa da nossa história.
Vida longa para a Empty Head Games, e que seus desenvolvedores possam continuar trilhando este caminho rumo ao sonho de criarem os seus próprios jogos.
Agradecemos gentilmente à Dear Villagers pelo envio de Saviorless para análise.
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