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Foto do escritorMaya Souza

Sand Land: Tanques de guerra e demônios nacionalistas — Crítica

Atualizado: 18 de jun.

Sand Land é curioso. Um mangá curtinho com só uns 14 capítulos que Akira Toriyama começou a escrever por seu desejo de desenhar tanques de guerra. Ele amava máquinas (e demônios) e Dragon Ball, seu magnum opus, simboliza isso muito bem. As engrenagens e as criaturas do inferno não eram o foco o tempo inteiro, mas nunca estiveram em falta. Na verdade, arrisco dizer que Sand Land é um verdadeiro retorno a Dragon Ball, mesmo que não compartilhe do mesmo mundo, ao contrário de Jaco e Neko Majin.


Sabe a divisão das eras Clássico e Z? Então, cresci ouvindo que elas eram bem diferentes em estrutura: enquanto a primeira era marcada pelo humor e senso de aventura, Z se focava no drama e ação com artes marciais e poderes. De fato, Dragon Ball Clássico se apresenta como uma aventura bem-humorada e despretensiosa, mas isso não dura tanto assim. As lutas entram em jogo bem no começo com o treinamento de Goku e Kuririn com o Mestre Kame e seguem em foco também no arco seguinte com o vigésimo primeiro torneio de artes marciais.

Também escutei que o tom de ambas as eras é diferente, o que é verdade, mas a mudança acontece umas boas dezenas de capítulos antes da chegada dos sayajins.


Eventualmente, a busca pelas esferas deixou de ser um desafio; agora era preciso restaurá-las ou protegê-las do mal, mas a aventura nunca cessou, o humor nunca sumiu, Dragon Ball só amadureceu. Eu esperava outra coisa, algo mais brusco do que é, de fato. A divisão funciona para diferenciar duas grandes etapas da vida de Son Goku, duas visões de universo diferentes, mas para separar entre era da aventura e era battle shōnen? Não muito. Dragon Ball é uma história de aventura do início ao fim. Sand Land também é e, na verdade, até mais que seu irmão mais velho.


Me surpreende um pouco que tenha demorado mais de vinte anos para que qualquer adaptação do mundo de areia tenha nascido. O mangá foi publicado pela primeira vez no ano de 2000, durante uns quatro meses, mas seu primeiro anime só surgiu em 2023 na forma de um filme em CG, reeditado em cerca de 6 episódios seriados em 2024, seguido do lançamento de um jogo desenvolvido pela ILCA.


Eu adoro o mangá de Sand Land e passei meses ansiosa para pôr as mãos em suas novas versões, não apenas por recontarem a história em outras mídias, mas também por continuarem. Akira Toriyama escreveu um novo arco para Beelzebub, Chief e Rao, uma continuação do mangá, presente tanto no anime, com mais sete episódios, quanto no videogame, em sua segunda metade. Para além de desertos, demônios e autoritarismo, temos florestas, anjos e ainda mais autoritarismo.


Antes de prosseguirmos, gostaria de agradecer à Bandai Namco Brasil pelo envio de uma chave de Sand Land para Xbox Series. Quero aproveitar a oportunidade não apenas para cobrir o jogo, mas também para conversar sobre todo o conjunto. Perdemos Akira Toriyama em março deste ano, mês do lançamento do primeiro jogo de seu deserto. Este não foi seu último trabalho, tendo em vista que Dragon Ball Daima e Dragon Quest XII estão por vir, mas ainda dói. Eu não seria quem sou sem as obras que ele publicou. Comecei a desenhar usando espelhos mágicos em impressões de artes do Piccolo, fanfiquei horrores sobre Kuririn e Vegeta e queria ser tão cool quanto o Trunks do Futuro. Sua arte influenciou e influencia milhares de pessoas, sua contribuição para o mundo é inquestionável e a ficha de que ele não está mais entre nós ainda não caiu para mim.


Diante de um mundo que tanto desvaloriza artistas, ao tentar nos substituir por ferramentas artificiais pífias que apenas furtam o trabalho alheio, é ótimo celebrarmos a vida e obra de alguém que inspirou e ainda inspira gerações.


Que Akira Toriyama descanse em paz. Espero conseguir expressar ao menos um pouquinho da minha admiração pelo que ele trouxe ao mundo e, quem sabe, explicar porque todos nós deveríamos adorar Beelzebub.





TERRA DA AREIA

Há muitas décadas, a nação de Sand Land era tão colorida e viva quanto o nosso planeta, mas uma grande guerra desertificou o mundo. Os mares e rios secaram, espécies foram extintas e o país inteiro se tornou um amontoado de rochas quentes. O governo, apresentado como uma organização militar, monopoliza uma fonte de água desconhecida e a vende em garrafas para o povo em quantias mínimas por valores inflados. Os demônios, temidos pelos humanos por serem diferentes, foram segregados.


A capitalização da água expõe que o governo pouco se importa com a condição da própria nação, pois, devido ao alto custo de um bem essencial, não sobra qualquer dinheiro ou escambo. A humanidade, pobre, não tem o direito ao lazer, mas sim ao labor; ou trabalham pela própria subsistência ou se criminalizam, furtando e roubando o pouco que as famílias mantêm guardado. Diante de uma vida miserável, recheada de propagandas falsas entregues pelos seus líderes, descontos vergonhosos passam a ser valorizados enquanto o exército cresce.


Alguns acreditam que o militarismo é o meio de salvar Sand Land. Soldados organizados e unidos para que cumpram um suposto objetivo comum. Eles caçam marajás e asseguram a comercialização da água para que possam proteger o que resta de uma nação em frangalhos. Os soldados e aspirantes do exército (acham que) são patriotas, tá ok?


Os seres centenários conhecidos como demônios se tornaram mais um dos povos que dependem do furto ou roubo para que possam sobreviver. Eles vivem juntos numa pequena vila comandada por Lúcifer e, junto ao seu filho, o jovem príncipe Beelzebub, organizam assaltos a criminosos no meio do deserto. Suas ações alimentam ainda mais a má fama que a palavra "demônio" carrega. Eles são lendas, monstros perversos contrários à humanidade. Beelzebub gosta e concorda com essas histórias; o garoto inclusive as fomenta com a inclusão de mais atos horríveis como, por exemplo, não arrumar a cama, não escovar os dentes ou mesmo deixar de passar o controle do videogame para o colega.


Diante de toda a situação, Xerife Rao, um humano cansado da escassez que assola toda a nação, decide tentar a sorte. Ele escutou rumores sobre a existência de um lugar especial com água em abundância e pretende ir para lá e restaurar os rios. Suas ações são todas pensadas pelo bem coletivo, por toda a nação, pouco importando quem seja. Ocorre que Rao reconhece suas limitações; seus dias de glória acabaram há décadas, e ele sabe que jamais sobreviveria sozinho no meio do deserto.


Em posse de um veículo com suprimentos, uma arma de fogo, um PlayStation 6 e uma cópia de Dragon Quest XIII, o xerife parte para recrutar demônios que possam ajudá-lo a concluir sua jornada nas areias e salvar toda a nação de Sand Land. Beelzebub vê uma oportunidade de ajudar seus colegas e é 100% convencido a ir por ser recompensado com o videogame, enquanto o velho ladrão Chief é levado junto por livre e espontânea pressão. Dessa maneira, a aventura começa.


Os parágrafos anteriores descrevem a premissa das três versões de Sand Land. Nós lemos, assistimos e jogamos um conflito geopolítico, acompanhamos o começo e o fim de um ato revolucionário contra um governo opressor representado pela dupla dinâmica Rei de Sand Land e General Zeu, que priorizam manter a soberania de sua própria governança sob sua pátria. Em momento algum eles lutam por amor ou devoção à nação que governam, eles não lideram pelo povo ou interesses comuns.


Zeu conduz o exército a caçar e matar grupos que tentam de alguma forma ajudar os oprimidos, ele manipula o máximo de informações possíveis para que seus soldados e os civis acreditem que estão fazendo o melhor pelo país. Alguns soldados e a população do deserto dariam suas vidas pelo bem de todo o povo, pelo bem comum, mas não é possível. O Rei e Zeu fazem de suas vontades as da nação. Onde deveria haver patriotismo existe nacionalismo e isso destruiu o mundo.


Enquanto isso, Beelze, Rao e Chief cometem crimes o tempo inteiro: eles furtam, roubam, ameaçam, danificam propriedades alheias, tudo sob a justificativa de que ao final de tudo, Sand Land será melhor. O trio se apropria de um tanque de guerra, uma arma violenta criada pela humanidade para impor vontades. Por mais que Beelze e Chief se divirtam com a fantasia de controlarem uma máquina tão poderosa, eles nunca mataram, eles temem matar. Rao, por outro lado, foi forçado a cometer crueldades que os demônios sequer cogitaram uma única vez, ele aceita fazer uso do tanque para concluir seu objetivo, mas faz o máximo para que essa arma não derrame mais sangue.


Beelzebub fez muito mais pela vida que a espécie humana fez para si mesma. Beelze finge não se importar com as pessoas, finge ser maligno, mas na primeira oportunidade cede os seus suprimentos de água para uma criança com menos que ele. Ele, um demônio, luta pela vida. O governo, humano, luta pelo dinheiro.


A aventura que acompanhamos no mangá é apresentada do maior estilo Toriyama possível: dinâmica e direta ao ponto. Nunca vemos demais do país de Sand Land, mas conhecemos toda a sua estrutura. Nunca conhecemos muito do passado dos demônios, mas os abraçamos como amigos.


Somos imersos no drama de Rao, mas nunca de forma explícita. Assim como acontecia em Dragon Ball, a arte torna a leitura rápida, mas muito, muito proveitosa. Eu diria que Sand Land conta com o ápice da arte de Toriyama, o equilíbrio entre suas formas e a aplicação da simplicidade dos designs e complexidade mecânica das máquinas, com uma consistência visual gigantesca em cada página.


Ainda assim, a primeira metade do anime se tornou a minha versão favorita do arco original. Ver Sand Land em cores, animado, vivo e ainda mais dinâmico é um deleite. A Sunrise escolheu não simplesmente adaptar o mangá tim-tim por tim-tim, mas reescrever sua história e expandir levemente os pequenos arcos. O drama, a ação e a revolução crescem. Sand Land vive.


Ao mesmo tempo, quanto ao jogo... disparadamente a versão mais fraca. A escolha de misturar o visual de anime com cenários realistas não me agrada (apesar de ser melhor aplicado aqui do que parece ser em DRAGON BALL: Sparking! Zero) e o jogo não sabe o que quer. Ao tentar agradar o maior número de pessoas possível, apresenta um número altíssimo de mecânicas, mas não tira proveito de nenhuma delas.


Temos níveis e árvores de habilidades, stealth, combate mano a mano, combate veicular, sessões de plataforma e puzzle, loot de peças para os veículos, coleta de suprimentos, sistema de descanso, sistema de party... tudo inserido num mundo aberto baseado em pings. Sinceramente, é bem um Ubisoft-like da vida.


Sinceramente, isso por si só não é um problema, mas o mundo de Sand Land não recompensa a exploração que o jogo quer que você faça, os níveis parecem inúteis, eu nem lembro para o que os suprimentos servem e nem sei o motivo do stealth estar presente. Ele tenta justificar cada adição ao, assim como o anime, reescrever a história, aqui ainda mais estendida.


As diferenças na história são maiores aqui: a ordem de alguns momentos foi alterada, acontecimentos inteiros foram modificados, temos cenas novas, personagens novos e muita desculpa para o jogo se estender. Apesar disso, ainda é Sand Land, continuamos na mesma premissa e jornada com os mesmos personagens, mas sem a mesma graça.


Inclusive, temos a adição de uma quarta personagem para o grupo de Beelzebub, a mecânica Ann, a primeira grande personagem feminina entre todas as versões da história. Ann é uma personagem nova criada para o arco de Forest Land, presente tanto no anime quanto no jogo. Eu só não sei quem ela é. No anime, Ann é apresentada apenas no segundo arco, enquanto no jogo ela integra o grupo principal desde o começo da jornada (o que achei uma ótima decisão). Porém... ela tem uma personalidade diferente entre as duas versões.


Na verdade, Forest Land como um todo é esquisita. O arco possui uma proposta parecida com o primeiro, participamos de outra revolução contra um governo opressor, dessa vez com a inimizade de um anjo que busca recuperar um artefato perigosíssimo que causou uma catástrofe no passado de Sand Land. Esse arco, além de menos interessante que o primeiro, é tão diferente entre as suas versões que nem parece a mesma história. Enquanto a expansão do mundo é muito interessante, até esse ponto eu estava cansado, especialmente com o jogo.


Dito tudo isso, eu gostei do videogame. Adorei a forma como o deserto está colocado aqui, especialmente como um playground para o uso do foco do jogo: máquinas. O mangá e anime se focam exclusivamente no tanque de guerra, o jogo não. Temos carros, barcos, saltadores, motos e até mesmo mechas. Sand Land quer que você use os veículos e minha nossa, todos são uma delícia de controlar. Querendo ou não, a interpretação da ILCA conseguiu, de alguma forma, me imergir no mundo desértico.


Esse mundo é bem grandinho agora que suas adaptações chegaram, e apesar do novo arco ou do jogo não terem sido tão legais quanto eu esperava, é maravilhoso as possibilidades de uma mesma história nas mãos de criadores e mídias diferentes. Leiam, assistam e (talvez) joguem Sand Land, mas acima de tudo, abracem a revolução.



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