Eu faço 20 anos de relacionamento com minha esposa agora em 2024. Iniciamos nosso namoro ali por volta de meados de setembro de 2004, mais especificamente dia 18 daquele mês, mas só viemos casar agora em 2021. Quando começamos, eu estava no começo da faculdade e ela, no final do Ensino Médio.
Os tempos não só reais mas também digitais eram muito diferentes. Usávamos mIRC e MSN como redes sociais para comunicação rápida, mas a grande rede do momento era o finado Orkut, ainda muito estimado pelos millenials e a qual a geração Z e Alpha não tem laço algum.
Por meio de apps mais simples de joguinhos competitivos em flash dentro do próprio MSN, até jogos plenos mais robustos como Pangya e Maple Story, jogar algo com minha companheira era uma experiência um tanto rara, já que dávamos preferência a conversar por texto enquanto cada um ouvia suas músicas ou fazia outras atividades em seu computador.
Mesmo quando estávamos fisicamente juntos, na casa dos pais dela ou na casa de minha mãe, era mais comum assistirmos filmes e seriados ao invés de jogar algo. Talvez pela pouca habilidade ou preferência pessoal mesmo, jogar juntos nunca foi uma atividade constante em nosso relacionamento. Isso é claro, nunca impediu de tentarmos jogar alguma coisinha aqui e acolá, seja à distância como os referidos Maple Story e Pangya, seja presencialmente, nos consoles que tive ao longo da vida.
Ambos tivemos Nintendo DS e jogamos bastante jogos multiplayer competitivos como Mario Kart e Mario Party. Também presenteei ela com um Super Nintendo Mini quando eles entraram no mercado, um mimo que tem sua própria história cheia de detalhes e atores que culminou em uma versão europeia do mini-console a custo zero em nossas mãos. Mas o papo hoje não é sobre isso, fica pra outro momento.
competir é bom, mas cooperar é mais
Jogamos Goof Troop do lendário Shinji Mikami no console e foi uma experiência maravilhosa. Rolou algumas pequenas importunações por ela frequentemente me acertar com barris na cabeça jogando com Max e eu Pateta? Sim. Mas acima de tudo foi muito divertido jogar com ela e aqui e acolá eu fico tentando angariar o interesse dela em algum novo jogo em co-op. É raro, mas acontece.
Há alguns anos antes da pandemia, por volta de 2015, nós costumávamos passar as noites de sábado na casa de um amigo nosso que adorava convidar o grupo inteiro mais próximo para jogar jogos na sala de estar. Era um apartamento bem grande onde ele morava com os pais, que amavam nos receber aos fins de semana. Jogávamos, conversávamos, bebíamos, era uma delícia.
Nesses encontros conhecemos Overcooked, jogo da Team 17 onde (tentamos) gerenciar uma cozinha caótica no intuito de entregar pedidos aos clientes enquanto lidamos com receitas cheias de etapas, pratos sujos a lavar, interferências mirabolantes de todo tipo e, claro, a pressão do tempo.
É um jogo de fases e bastante conhecido, você mesmo lendo o texto já deve ter ouvido falar ou mesmo jogado, já que ele é bem famoso entre os jogos de festa cooperativos, por ser naturalmente caótico e “destruidor de amizades”.
Nós jogamos e finalizamos o jogo na companhia dos amigos. Sempre 3-4 pessoas jogando, mas curiosamente minha esposa preferia ficar de fora quando tinha gente suficiente, se limitando a ficar se divertindo vendo o caos tomar conta enquanto mexia no seu celular interagindo nas redes sociais e conversava com os outros presentes.
Nos últimos dias ela me pediu pra jogar Overcooked 2. Cismou que queria jogar comigo e eu que, é claro, não negaria, já que acho a série superdivertida. Suspeito que deve ter visto alguma influencer ou amiga jogando e ficou instigada a jogar também. Os motivos não importam muito, já que pude ter a oportunidade de jogar mais um jogo com ela. Mas bastou começarmos que começaram a surgir alguns atritos.
destruir ou fortalecer, depende dos envolvidos
O primeiro desafio a ser superado foi a questão da atenção dividida. Minha esposa é produtora de conteúdo e influencer, então ela passa muito tempo no celular respondendo pessoas e interagindo para que seus números sigam crescendo e ela tenha mais oportunidades de trabalho. Essa necessidade faz com que ela não tenha horários bem definidos ou carga horária diária, de modo que todo tempo enquanto está acordada ela está com o celular.
Se torna difícil se concentrar em um jogo que demanda muita atenção e habilidade para vencer a pressão do tempo e executar de forma satisfatória suas tarefas enquanto se usa o celular, especialmente por ser um jogo com um tempo de espera entre uma fase ou outra, ou mesmo o tempo de carregamento entre as telas do mapa-múndi e as fases propriamente ditas, o que dá a desculpa perfeita para perder o foco e dar uma olhadinha rápida nas mensagens.
Soma ainda que a jornada exaustiva da minha mulher faz com que ela frequentemente tenha muito sono quando ela finalmente para de trabalhar, então nem sempre conseguimos avançar muito em um jogo (ou seriado) até que ela caia no sono com o controle ou celular na mão. Além da dificuldade de focar, precisamos lidar com o cansaço que a acomete diariamente.
Além da concentração interrompida frequentemente, o ciclo de jogo em Overcooked exige um certo nível de habilidade e destreza que ela não tem, já que não tem tanto costume de jogar quanto eu. O acúmulo desses fatores fez com que no começo do jogo tivéssemos mais discussões e até uma irritação maior da minha parte com as sucessivas falhas que estávamos amargando, frente a desatenção e perda de foco da parte dela.
Pra piorar, eu e minha esposa temos um pé no perfeccionismo, e Overcooked 2, assim como seu predecessor, é um jogo que premia com estrelas o desempenho em cada fase. Tentar pegar três estrelas em cada fase não se trata de uma tarefa obrigatória per se, mas se torna em virtude de nossas características. E, como era de se esperar, a frustração do fracasso sucessivo causa naturalmente uma impaciência e uma elevação de voz que vão escalonando e deteriorando o ambiente toda vez que uma orientação não é seguida, ou quando erros involuntários acontecem.
Essa condição foi notada e endereçada logo cedo (não sem atrito). Minha esposa parou o jogo e me disse que só prosseguiria jogando comigo se eu tivesse mais paciência e calma, e evitasse me estressar com ela. Pedi desculpas pela impaciência e grosseria e pedi também que ela parasse de ficar o tempo todo no celular para evitar desconcentrar e ainda para que a atenção dela estivesse plena no nosso momento, ou seja, tá na hora de dar um tempo no trabalho e focar no aqui, no agora.
"Foi preciso chegar em um acordo bilateral para que progredir na empreitada voltasse a ser uma diversão compartilhada, e não uma fonte de mau humor e briguinhas".
Após o entendimento, seguimos jogando Overcooked 2 até o fim. São apenas seis mundos com receitas variadas e novidades em relação ao primeiro jogo. Existe uma pá de conteúdo extra mais desafiador, mas decidimos optar por focar na campanha e deixar o restante pra quando ela tiver mais habilidosa no jogo. Também não compramos nenhuma DLC, então nos concentramos no conteúdo base mesmo.
Um ambiente para inúmeros resultados
Uma das coisas mais legais de Overcooked é como ele é leve e animado pra um jogo tão caótico e propenso ao atrito entre os jogadores. Apesar dos constantes desafios pondo a prova nossas habilidades e paciência, a trilha sonora é um deleite com muitas músicas de ritmo e andamento que instigam o movimento contínuo. Em um clima mais relaxado e descompromissado, o jogo é facilmente fonte de risadas e outro tipo de gritaria, numa vibe mais de festa e menos de discordância.
Novos personagens vão sendo desbloqueados para caracterizar nosso avatar/chef, desde personagens humanos a criaturas antropomorfos como gatos, cachorros e....Cthulhu, é você? (brincadeira, era só um polvo comum mesmo). O design deles também contém uma variedade de inclusões sociais divertidas, como personagens com desabilidades e de diversas etnias. Essa constante adição vai incentivando os jogadores a personalizar e trocar de boneco, adicionando mais elementos de expressão e humor.
As receitas também oferecem uma ampla variedade de ingredientes e modos de preparo. Cortar em tábua, fritar ou saltear em frigideira, fritar por imersão em óleo em fritadeira elétrica, bater em batedeira e assar em forno fazem parte das múltiplas ações disponíveis. Mas o caos vem mesmo com as fantasiosas e cômicas quedas de meteoritos criando pequenos incêndios, movimentos constantes dos elementos do cenário trocando ingredientes e utensílios de lugar, bloqueios temporários ou alterações de zonas de difícil acesso que aumentam as chances de um equipamento queimar, dar curto-circuito ou do jogador derrubar ou cair em buracos perdendo ingredientes e até mesmo pedidos completos.
as lições que tiramos
Talvez o maior trunfo de Overcooked 2 esteja não em outra coisa senão aprender a gerenciar o caos e a cooperar com os outros jogadores para realizar as tarefas. Executar as tarefas é relativamente fácil, com interações simplificadas e contextuais que dispensam muito tempo para se acostumar com os controles e movimento pelo cenário. E quando se tem dois parceiros onde um tem muito mais experiência e domínio sobre um controle de videogame do que o outro, também é necessária uma boa comunicação, gerenciamento de equipe e controle mental do estresse que esse caos provoca.
Jogos como Overcooked trazem verdadeiras lições reais que se pode carregar para a vida fora das telas, vale ressaltar. As habilidades sociais que eles, como quase todo jogo que envolve interação e cooperação entre os jogadores, nos forçam a desenvolver em um ambiente virtual, podem, conforme Jane McGonigal sustenta em seu livro “A Realidade em Jogo: Por que os games nos tornam melhor e como eles podem mudar o mundo”, ser aproveitadas tranquilamente em outros setores da vida das pessoas, em especial a profissional.
A capacidade de cooperação é frequentemente citada quando se fala sobre, mas outras habilidades como a capacidade de resolução de conflitos, de raciocínio e análise crítica, bem como comunicação eficiente sob pressão são citadas como habilidades extremamente valorizadas e desejadas por recrutadores e essenciais para se tornar um profissional de qualidade. McGonigal inclusive defende que em nosso mundo moderno, se dedicar aos videogames em nosso tempo livre nos permite desenvolver essas habilidades de forma natural, sem a necessidade de atividades e treinamentos corporativos que diversas vezes falham em engajar as pessoas por inúmeros motivos.
Sempre que me vejo em situações de estresse por causa de jogos não só como Overcooked, mas também jogos de ação desafiadores e jogos de quebra-cabeça com pressão do tempo, eu me recordo desses conceitos e reflito sobre as lições aprendidas na jornada de "entender, compreender, executar e dominar" em cada jogo que jogo.
E quando, após lutar bravamente em conjunto com minha esposa para conseguir três estrelas em todas as fases, gerenciando todo o estresse e a pressão que isso demanda, e em seguida, após finalizar triunfantemente Overcooked, o pós-créditos nos revelar um endgame informando sem pudores que agora todas as fases anteriores estão atualizadas para que se possa ir atrás de uma quarta estrela em cada uma delas, eu aprendi uma nova lição: a hora de parar.
Nesse ponto perguntei à minha parceira o que deveríamos fazer, e pelo bem do nosso mental e do nosso casamento, decidimos em uníssono que estávamos satisfeitos, partindo para o próximo jogo cooperativo, que ela prontamente dormiu após terminarmos a segunda fase introdutória, cansada mais uma vez, da exaustão do dia-a-dia.
Você também pode gostar de: I Am Your Beast: Level designer revela desafios de criação do jogo — Entrevista
E que tal entrar no nosso grupo do Discord? Lá temos vários eventos, materiais de estudo e uma comunidade incrível esperando por você. É só clicar aqui!
Siga o Game Design Hub nas redes sociais!
Comments