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Os caminhos dos Adventure Games e o legado cultural em Another Code™: Recollection — Artigo | Análise

"Todos os caminhos saem de Roma"

Algo soa estranho nessa frase, não era...ir à Roma? Mas calma que é isso mesmo. Quando lançamos o olhar para jogos de um determinado gênero ou subgênero, é comum que possamos identificar elementos similares entre eles e traçar uma origem comum.


Mesmo levando em conta as diferenças culturais, como o caso do berço estadunidense dos jogos eletrônicos, muitos gêneros nasceram ali e deles derivaram. Temos, de certa forma, a nossa "Roma dos Videogames", seja se pensarmos na criação do Tennis for Two no osciloscópio, seja se tomarmos como ponto de partida o Brown Box, ou ainda o Magnavox Odyssey.


Dentre os diferentes gêneros existentes, um deles sempre me fascinou por suas peculiaridades, que é o adventure. Pensar no termo e se perguntar "ué, mas quase todo jogo não é um aventura?" é natural, mas incorre em um equívoco que é comum de quem não tem familiaridade com as nuances da categorização.


Como tudo no mundo dos jogos, o termo adventure não é exatamente autoexplicativo e se refere a um gênero de jogos que, se for pra tentar definir em retrospecto, são jogos cujas interações que provocam a progressão se distinguem do bom e velho combate. O foco é forte em solução de quebra-cabeças, diálogos e no próprio roteiro.


Esse gênero nasce com os chamados text-based adventures, jogos compostos majoritariamente por literalmente texto. Uma espécie de literatura interativa em que os rumos que você toma partem sempre do mesmo lugar, mas dependendo de suas escolhas vai caminhando para finais diferentes, ou cenas diferentes em busca de uma conclusão.


Tudo feito por meio de escolhas e comandos textuais como "andar para o norte", "entrar pela porta", "abrir a gaveta" dentre tantos outros. Mystery House (1980) e King's Quest (1984) são alguns nomes fantásticos que passaram a reduzir a quantidade de texto descritivo e a substituir por imagens, criando os chamados graphic adventures.


Já em 1987 a Lucasfilm Games viria a revolucionar o próprio gênero com o sucesso Maniac Mansion, que trazia um conceito inovador introduzido por Enchanted Scepter (1984): uma interface de apontar e clicar utilizando um mouse, conhecida por point-and-click (finalmente um termo autoexplicativo).


Repare que todos esses títulos são, para todos os efeitos, ocidentais. Mas lembra que estávamos ilustrando os Estados Unidos como a "Roma dos videogames"? E se todos os caminhos saem de Roma, fica a pergunta subsequente: seria o Japão a outra ponta da estrada?


É sobre isso que iremos falar a seguir.


Um outro destino, uma outra cultura

Propaganda do Othello, arcade lançado no Japão exclusivamente pela Nintendo em 1978
Propaganda do Othello, arcade lançado no Japão exclusivamente pela Nintendo em 1978

Ser o berço dos videogames significa que a origem dos conceitos e procedimentos de forma geral é a mesma. Mas quando falamos de produção cultural, entram em cena fatores sociais inerentes ao local da própria produção. Se isso acontece até mesmo com bens de consumo desprovidos de criação intelectual, que dirá com produtos de economia criativa.


Enquanto a História seguia seus rumos no ocidente, no Japão o desenvolvimento de jogos partia dos títulos estadunidenses para ganhar variações e experimentações próprias do povo nipônico.


Em verdade, o próprio conceito de videogame é diferente por lá. Alguns acadêmicos usam o termo geemu (ゲーム), ou gêmu, pra se referir ao conceito japonês de jogo e as diferenças incluem elementos de definição, por exemplo, além de estabelecer paradigmas e referências das quais toda a indústria japonesa vai derivar, incluindo suas peculiaridades culturais.



Mas os jogos não são apenas variantes de gêneros existentes: Os jogos de romance visual (um romance ilustrado com caminhos ramificados e interação limitada) têm sido muito bem-sucedidos no Japão e não tiveram variantes diretas no Ocidente. Esses romances visuais chegaram ao Ocidente em apenas alguns casos, como Zero Escape: Virtue’s Last Reward (2012). Outros gêneros, como dôjin sofuto (jogos amadores) e dating sims (jogos de simulação romântica onde o objetivo principal é encontrar um parceiro), raramente foram lançados fora do Japão, a menos que sejam misturados com outros gêneros, como na série Persona e Catherine (Atlus, 2011). Um subgênero de dating sims é eroge, um portmanteau de "erótico" e "jogo". Esses gêneros (romance visual, dating sim, eroge) derivam do mangá e até podem ser considerados "mangá audiovisual" nos quais a leitura é o pilar principal do trabalho e as decisões do jogador determinam o progresso da história. Esses gêneros têm conquistado algum seguimento fora do Japão, graças às importações, mas apenas em pequenos nichos dedicados. (Traduzido pelo Editor)

E se Mystery House inaugurava o gênero das graphic adventures no ocidente e King's Quest junto de Maniac Mansion construíam o pavimento para a vertente europeia e norteamericana, no Japão era Portopia que fazia esse papel.


The Portopia Serial Murder Case é, nas palavras da Square Enix, "o primeiro jogo de aventura de detetive real". Sua influência impactou tremendamente o imaginário dos criadores japoneses tendo sido citado por nomes como Hideo Kojima como uma de suas maiores inspirações.


Ele não é o primeiro adventure japonês, entretanto, já que o arquipélago também produziu jogos de aventura textual como Omotesando Adventure, ou ASCII, como conhecido por aqui, e Minami Aoyama Adventure. Portopia também não é o primeiro graphic adventure nipônico, já que uma empresa japonesa chamada Micro Cabin lançou em 1982 o jogo Misuterii Hausu (ミステリーハウス) que significa, literalmente, Mystery House.


O Mystery House japonês não era uma conversão do ocidental. Ele se inspirou nele pra criar um jogo diferente, sem relação alguma com o título da On-Line Systems, desenvolvedora do Mystery House original.


Nessa época não existiam restrições de conteúdo, então, como se era de imaginar, tal qual aconteceu no ocidente com Leisure Suit Larry, os japoneses começaram a criar não só aventuras de mistério, mas também jogos com conteúdo erótico. Night Life (1982) foi o primeiro jogo erótico comercial produzido no Japão, e deu origem a toda a subcultura dos chamados eroges, abreviação com justaposição japonesa de erotic game.


Durante esse período, não era incomum encontrar a inserção de combate transformando os jogos em outro gênero que hoje conhecemos como JRPG, com a presença dos mesmos elementos originais dos adventures, como diálogos, rotas de narrativa e roteiro denso acrescidos dos elementos de RPG.


Mas desse caldeirão surgiram algumas convenções que marcaram não só a vertente japonesa do gênero, mas também de outros tantos, como a seleção de comandos por meios da navegação de menus. Isso não é uma característica exclusiva japonesa, já que jogos de MS-DOS ocidentais também o utilizaram. Basta lembrar de Where in the World is Carmen Sandiego (1985), que fazia uso desse tipo de design.


Spy 007 (1983) foi o primeiro japonês a utilizar a seleção de comandos por menus, inspirando outros jogos posteriores. Mas foi a utilização desse conceito por Yuji Horii em The Hokkaido Serial Murders: Missing in the Okhotsk (1984) que não só o popularizou imensamente, como o tornou um padrão que veio a ser utilizado posteriormente em Dragon Quest e tendo assim influenciado basicamente todo o gênero de RPGs japoneses, além dos adventures.


Com Snatcher, em 1988, o lendário Hideo Kojima entrou para o universo dos adventures após completar seu jogo de ação furtiva para o Metal Gear. Snatcher combinava elementos de seus predecessores de gênero em um projeto ambicioso envolvendo um detetive em um ambiente cyberpunk.


A grandiosidade de Snatcher era considerável. Ele pretendia estender os limites da narrativa dos videogames, fazendo uso de cenas cinematográficas e conteúdo adulto, e aqui não se refere a erotismo. Kojima também já começava a experimentar a inclusão de mais formas de interação, as chamadas mecânicas, pra diversificar o gameplay e inserir elementos de ação, como trechos de tiro, condizentes com a temática de thriller de ficção científica.


Nesse ambiente já podíamos ver como o gênero era importante para a mistura midiática japonesa, uma vez que, sob o seu manto, abrigava graphic adventures com menus e point and click, jogos eróticos, literatura pesada e cenas cinematográficas.


Caminhos paralelos, mas nunca isolados

O passar dos anos e gerações de consoles e computadores, especialmente com o advento da globalização, permitiu que os rumos ocidentais e japoneses andassem de forma independente, mas não sem influências mútuas ou marcos conjuntos.


A importância de saber esses marcos é que são eles que vão instigando outros desenvolvedores a seguir por esse caminho dentro de um modelo ou contexto social e desta forma evoluir o gênero.


Assim como Portopia e Snatcher foram moldando o modelo japonês, a vertente ocidental se espelhou em Maniac Mansion, e logo títulos aprimorados da fórmula ali contida como Full Throttle e The Dig surgiram para evoluir o gênero.


Jogos como Planet Mephius (1983), que não citei antes, demonstravam no braço japonês os conceitos de menus e a interface de apontar e clicar enquanto Sam & Max Hit the Road (1993) no ocidente trazia inovações relacionadas à interface point-n-click, tornando-a mais limpa e simplificada, além da inserção de atuação de voz profissional.


Os próprios jogos de maior sucesso foram sendo refeitos com tecnologias modernas e se tornando versões melhores de si mesmos, acompanhando os avanços de hardware.



O gênero passou os anos 90 inteiro se aprimorando e se reinventando tanto no ocidente quanto no Japão. Ao longo do tempo, vimos que os elementos principais de um adventure começaram a ser entrelaçados com outros gêneros, em especial jogos de RPG e de ação.


Em um determinado momento, o gênero se tornou um dos mais ricos meios de "contação de histórias" de toda a indústria, mas sempre evitando o seu calcanhar de Aquiles, que seria o combate e a ação constante. Afinal, ao adicionar batalhas ou elementos de reflexo e coordenação motora como parte expressiva do design, o jogo corria o risco de deixar de ser um adventure e se tornar outra coisa, como um RPG em turnos, action RPG, ou ainda um action-adventure.


Manter um jogo como um adventure puro logicamente se tornou algo fora da curva e cada vez mais impopular, já que os custos de produção crescentes e a perda de interesse do público geral no gênero o tornava cada vez mais nichado.


A proliferação de RPGs e de shooters, dentre outros gêneros, se tornou maior que o de adventures por uma série de fatores. Os shooters no ocidente encantavam o público com sua perspectiva e imersividade, sem falar de seu dinamismo, roubando o protagonismo. A procura por jogos de ação foi aumentando radicalmente a medida que os jogos se tornavam mais populares como mídia de entretenimento, os shooters se tornaram uma febre ocidental.


Quake (1996) - Fonte: Steam


Por sua vez, os RPGs aproveitavam os mesmos aspectos fortes de um adventure (narrativa, diálogos e interações) sem excluir o combate e os intricados sistemas que o circundavam e que tornavam a experimentação tática de possibilidades divertida por si só. Além disso, a mera presença de batalhas, por mais simples que fossem, já permitia que o tempo de duração de um título fosse maior. Assim, era mais interessante produzir RPGs do que adventures.


No ocidente, os jogos de adventure poderiam ser finalizados, caso a pessoa soubesse resolver os quebra-cabeças, em poucas horas, exigindo que o gênero se tornasse cada vez mais obtuso, com soluções cada vez mais fora da caixa e de difícil imaginação para fazer com que o tempo do jogador com o produto se tornasse maior.


No Japão a solução foi diferente. A proximidade do gênero com Visual Novels permitia que diversos adventures incorressem em mais tempo de jogo por meio de um volume maior de texto e diálogos. Mas isso nem sempre era o caso.


O surgimento de misturas únicas e criativas do lado japonês, junto de seu próprio contexto cultural fez algo que os ocidentais não conseguiram fazer. Não que tenham impedido o gênero de se tornar nichado em terras nipônicas, mas certamente permitiram que ele se transformasse de uma maneira distinta e se mantendo mais presente no mercado.


A mistura midiática japonesa

Um termo que frequentemente aparece em estudos acadêmicos da mídia japonesa, incluindo animes, mangás e jogos é o chamado media mix.



Nós compreendemos o conceito de media mix dentro da categoria teórica mais abrangente da transmedialidade. A ideia de transmedialidade tem sido examinada em diversas disciplinas desde 2003, quando Jenkins cunhou o termo "transmedia storytelling" (Jenkins, 2003). Enquanto isso, vários estudiosos têm examinado as características do media mix no Japão para determinar as semelhanças e diferenças entre os aspectos desses dois termos. (Traduzido pelo Editor)

No contexto da cultura e entretenimento, o media mix se refere a uma estratégia de dispersão de conteúdo em diversas representações, muito similar ao conceito que usamos aqui no ocidente conhecido como transmídia.

 

Entretanto, as questões socioculturais japonesas tornam esse conceito diferente no ambiente nipônico. Talvez seja ideal encarar como um ambiente midiático com perspectiva própria. Cada país tem seu ambiente midiático diferente, e práticas e consenso se formam ao entorno daquele ambiente, daquela ecologia.

 


Para investigar as origens do media mix no Japão, examinaremos de perto a revolução ambiental em torno dos primeiros meios de comunicação no Japão, aplicando o arcabouço conceitual da ecologia da mídia. Esse termo já havia sido utilizado anteriormente, mas foi Neil Postman quem articulou claramente uma definição como "o estudo da mídia como ambientes" (1970, 162). Ele se consolidou nos seminários sobre ecologia da mídia oferecidos na Universidade de Nova York em 1976-1977 (Levinson, 2000). O conceito então se tornou objeto de escrutínio sério durante a época da convergência de mídia. Tais esforços são representados pelo estabelecimento da Associação de Ecologia da Mídia, "dedicada a promover o estudo, pesquisa, crítica e aplicação da ecologia da mídia em contextos educacionais, industriais, políticos, cívicos, sociais, culturais e artísticos". (Traduzido pelo Editor)

No caso do ambiente japonês, a ecologia midiática no país, em especial após os anos 80, tornou extremamente comum a utilização do fenômeno de transmídia que aqui conhecemos de uma forma muito mais aberta e livre.

 

Discussões como “cânone”, por exemplo, e outros elementos são completamente irrelevantes para muitos produtores japoneses. É como se a própria noção de tradicionalismo que se associa ao japonês não existisse e os criadores não dessem a mínima para uma espécie de coerência universal de uma obra. Talvez Zelda e Mario sejam bons exemplos, mas encontramos tantos outros exemplos como a série Resident Evil que costuma ignorar detalhes e se contradizer inúmeras vezes.

 

Por isso vemos tantos animes, jogos, filmes e demais mídias recorrerem a franquias e seus personagens sem se preocupar em manter uma linha temporal ou sequencial de qualquer maneira entre elas. Basta lembrar como diversos filmes de séries de animação como Dragon Ball e One Piece não se encaixam bem em suas obras originais, e não se vê problema algum nisso.


O objetivo é literalmente explorar abertamente conceitos próprios de cada mídia aproveitando imagens, personagens e universos já conhecidos. Isso promove uma sensação de familiaridade com a obra, enquanto oferece algo novo.

 

Os japoneses utilizaram essa ecologia midiática para seguir com a produção de adventures baseados em outras obras transmídia normalmente enquanto o gênero definhava no ocidente e era absorvido por outros. Um anime ou um filme que ganha um jogo, por exemplo, ou personagens da cultura pop que são transpostos para um produto midiático que é tratado no Japão como jogo e, portanto, participa dessa mistura.



Foi assim que o Japão manteve viva e mais relevante a produção em ambiente comercial de adventures, em minha opinião. Por também ter um foco primordial doméstico de produção midiática, sem uma preocupação com o mercado internacional, o gênero seguiu sendo produzido por empresas de grande porte como Square Enix e Konami, com expectativas realistas baseadas no público japonês.

 

No mercado interno a própria existência de empresas menores se manteve viável, já que as fanbases de outras mídias sustentavam os produtos em conjunto com o nicho do gênero. Foi assim que ao longo das gerações, em especial Playstation 2 e Nintendo DS, o Japão seguiu lançando sistematicamente jogos de adventure no mercado.

 

Não obstante, a mixagem de gênero com Visual Novel sempre manteve a indústria japonesa experimentando e produzindo adventures com mais ou menos elementos de gameplay, tais como a série de sucesso Ace Attorney, a tradicional série Jake Hunter, a série Professor Layton e a série Trauma.

 

Arc System, Aksys Data East, e Spike Chunsoft são empresas seguem produzindo outras tantas outras franquias e jogos pontuais de sucesso no gênero, como D4, Deadly Premonition, Zero Escape e Danganronppa, sem falar das inúmeras Visual Novels que são pra todos os efeitos variações de adventures com menos interações e se confundem dentro da noção japonesa do gênero, recebendo subclassificações de acordo com suas funcionalidades e particularidades.


No ocidente, a empresa Telltale Games fez um certo alvoroço na década passada com a produção de adventures modernizados. Mas vimos ao longo do tempo que a falta de inovação, os custos e ambições da empresa acabaram levando ao seu fim e posterior renascimento como estúdio que hoje subsiste mais do que existe.

 

O mercado mundial ocidental atual encontra em meios como crowdfunding ou assinaturas formas de produzir novos jogos do gênero puro. Temos empresas como a Double Fine que hoje pertence à Microsoft que desenvolveu e publicou jogos custeados pelo Kickstarter, como Thimbleweed Park e Broken Age, e a Wadjet Eye Games, de Dave Gilbert, que é especializada em jogos de point-and-click modernos. A própria Microsoft lançou recentemente o jogo Pentiment, que carrega consigo o legado dos adventures ocidentais.

 

Mas no Japão, só nos últimos anos tivemos a Nintendo relançando Famicom Detective Club e Another Code Recollection, Square Enix lançando Paranormasight (meu jogo favorito de 2023) e a Capcom relançando suas coletâneas de Ace Attorney, sem mencionar o restante da indústria com as publicadoras independentes japonesas. Foi bom inclusive tocar em Another Code, porque foi esse jogo que instigou o preparo desse ensaio.


uma empresa chamada cing

Na época do Nintendo DS, uma empresa independente com 29 funcionários que tinha foco em adventures despontou na plataforma. O nome dela era CING, e uma de suas mais proeminentes figuras era a escritora Rika Suzuki.


Os jogos produzidos por ela no portátil da Nintendo possuíam algumas características similares. Eles buscavam usar as duas telas de formas criativas para solucionar quebra-cabeças, os jogos eram todos focados em um mistério, com uma carga pesada textual e focados em muito diálogo, similar ao que vemos nas Visual Novels, mérito da expertise de Suzuki na produção de romances. Eles também usavam um sistema de “recapitulação” que era uma marca da empresa.


Ao fim de cada capítulo o jogo nos perguntava detalhes sobre a trama e sobre os personagens para que pudéssemos relembrar de detalhes e ter certeza que estávamos “atentos” à história. Esse recurso era trivial, mas interessante pra quem jogava o jogo em sessões espaçadas.

 

Trace Memory, Hotel Dusk, Again e Last Window foram alguns de seus sucessos lançados no DS. Posteriormente, Trace Memory recebeu uma continuação para Wii, chamada de Another Code R – A Journey into Lost Memories. Praticamente todos os seus jogos foram publicados pela Nintendo, mas a Tecmo foi responsável pelo Again, seu título menos conhecido.

 

Após sua falência em 2010, a Nintendo aparentemente ficou com as IPs de Another Code (Trace Memory e Another Code: R) e talvez tenha ficado com o restante, mas não sabemos muito sobre isso, infelizmente.


Sabemos apenas que a equipe remanescente da CiNG com Taisuke Kanasaki, diretor da saga Another Code e da Saga Kyle Hyde (Hotel Dusk e Last Window) lançou em 2016 o jogo Chase: Cold Case Investigations ~Distant Memories~ pela Arc System Works, e que Rika Suzuki fundou seu próprio estúdio e lançou o RPG com gacha Black Rose Suspects, em 2017, sem ter participado da produção de Chase.


Já em setembro de 2023 a Nintendo anunciou que iria relançar uma coletânea com o remake dos dois jogos da franquia Another Code para o Nintendo Switch agora em 2024.

 

Isso é um tanto estranho e nos pegou totalmente de surpresa. É que a Nintendo refez Famicom Detective Club no passado, mas não os colocou em uma coletânea. Pelo contrário, resolveu vendê-los de forma separada.


Agora, com Another Code, a empresa resolveu “empacotar” os dois jogos em um só, criando uma progressão contínua de um para o outro, já que se tratam de títulos sequenciais, mantendo todo o resto coerente em matéria de interface, menus e direção de arte.

 

Talvez tenha sido esse o motivo de agir diferente com Famicom Detective Club, já que neste os jogos são meio que independentes e funcionam um sem o outro. Mesmo assim, os dois compartilham assets de animação, sons e interface de maneira generalizada, além de terem o mesmo protagonista e terem uma espécie de relação temporal entre eles. De todo modo, independente do tratamento diferenciado, temos com Another Code Recollection uma só obra concisa contendo as duas partes da história de Ashley.

 

O remake tratou de atualizar e padronizar o motor gráfico dos dois jogos, que agora rodam sob a mesma estrutura e visual. Como o primeiro jogo era para o DS e o segundo para Wii, tivemos não só uma atualização gráfica, mas foi necessário também adaptar os controles e interações que antes utilizavam as características únicas de cada console para as funcionalidades atuais do Switch.

 

Pessoalmente, eu achei que a Nintendo foi uma tanto simplista. Não só ela reduziu a complexidade de alguns dos quebra-cabeças originais, como também alterou a forma de interação para algo muito simplório em alguns casos. E ainda pasteurizou os dois jogos em uma direção de arte mais limpa e "higiênica", eliminando hachuras e riscos que faziam parte do traço das ilustrações originais.

 

Analisar os dois jogos juntos é também um tanto complicado. Apesar de serem parte 1 e parte 2 de uma mesma história, o contexto de lançamento de cada um é muito diferente, em matéria tecnológica.

 

A história de ambos os jogos é em torno das temáticas de memórias e família. Mas o cenário e o escopo dos dois jogos variam muito. Vou tentar analisar e descrever cada um com suas particularidades e o que eu acredito ser algo de positivo pra cada um respeitando suas diferenças e propostas.


trace memory ou another code: Two memories


Two Memories recebe esse nome no remake em alusão ao título original em japonês. Originalmente seu nome era Trace Memory nos EUA, e ele trazia o contexto de uma garota de 14 anos que vivia com a tia, sem os pais.


A mãe da garota, como ela recorda em flashes e sonhos, faleceu para protegê-la, mantendo-a dentro de um armário ao ter a casa invadida. Já o pai, havia saído de casa deixando-a com a tia, enquanto se dedicava corpo e alma a concluir um projeto de pesquisa.


Após 10 anos sem ver seu pai, sem inclusive memórias dele, ela recebe um convite para encontrá-lo em uma ilha abandonada, onde fica uma mansão. Encorajada por sua tia mas sem muita vontade de fazê-lo, ela relutantemente aceita o convite e chega na ilha de barco, acompanhada de sua única parente viva.


Após discutirem um pouco, Ashley se separa da tia, que se adiantou na busca do pai da menina, desaparece com um grito, ficando apenas seus óculos na entrada da mansão. Sozinha e sem saber como proceder, Ashley começa a procurar um meio de entrar na mansão e procurar por sua tia.


Na busca por um meio de entrar na casa principal, a garota vai parar num pequeno cemitério da família, onde se depara com o fantasma de uma criança, D, e a partir daí nasce uma parceria para buscar respostas, já que o pequeno também tem amnésia e não lembra do seu passado e porque ainda vaga por ali.


Por meio de exploração e quebra-cabeças envolvendo a tela de toque e a stylus originalmente no Nintendo DS, o jogador no papel de Ashley avança pela mansão, descobrindo e revelando coisas sobre seu passado e de D. A amizade dos dois vai se fortalecendo ao longo da jornada, até que todas as respostas tenham sido encontradas.


Two Memories atua como parte um do arco de Ashley, focando em suas memórias e as de D acerca dos acontecimentos que levaram à morte de sua mãe e, no caso do fantasminha, sua própria morte.


O cenário da mansão é perfeito para encaixar uma trope antiga de ricaços excêntricos fissurados por portas e compartimentos secretos, além de passagens escondidas dentro de casa. A movelaria antiga esconde diversos mecanismos e segredinhos que vão ativando e disparando engrenagens, e o mistério em relação à história daquele lugar auxiliam a estabelecer o ambiente intrigante que atiça nossa curiosidade.


O remake precisou alterar uma série de quebra-cabeças do original, uma vez que não faz uso de stylus e tela de toque no Switch. Ao invés disso, temos o uso de menus e um ponteiro virtual eventual para realizar o point’and’click. É um título que para todos os efeitos carrega o extenso legado de experimentações e convenções de adventures japoneses.


O ritmo de jogo é marcado por pequenas sessões de exploração e resolução dos quebra-cabeças seguidas de cenas com diálogos com atuação de voz completa e bilíngue. É possível jogar com o áudio em inglês ou japonês.


O cenário da história é inglês, então se o jogador preferir jogar nessa língua não vai ter uma experiência ruim. Ela não soa em nenhum momento deslocada ou incoerente, muito pelo contrário.


Optar pela japonesa é muito mais uma escolha do jogador. Eu estudo japonês, então ouvir o áudio em japonês me ajuda muito a associar expressões, vocabulário e estruturas ao que está acontecendo e com sua tradução em inglês.


Também é possível, para estudantes como eu, mudar a língua do jogo para japonês. Isso permite acompanhar com a voz o texto escrito e ajuda muito a expandir vocabulário e praticar a pronúncia das frases, buscando imitar o que é dito pelos personagens. Eu diria que em toda a minha experiência de jogos japoneses, esse talvez seja o melhor jogo já lançado para estudar o idioma, seja pelos recursos de voz e repetição de áudio e texto, seja pelo nível do vocabulário e diálogos que é gentil com os níveis mais iniciantes de japonês.


Se tem algo que ele precisa ser fortemente recomendado, é exatamente por essa característica. De resto, ele é um adventure bastante competente, com história bacana e personagens pouco marcantes, apesar de relativamente bem desenvolvidos.

Another Code R – a Journey into Memories

Dois anos após os eventos de Two Memories, Ashley, agora com 16 anos, é convidada a ir a um complexo no Lago Julieta, onde uma certa pessoa trabalha. Chegando ali ela é surpreendida por um garoto que aproveita de sua distração pra roubar sua mochila.


Chateada e impaciente, ela está disposta a voltar pra casa, mas... sua carteira estava na mochila, então ela precisa conseguir dinheiro para pagar a passagem de volta. Ela então entra no complexo onde estava sendo construído um resort e ali reporta o roubo de sua mochila e pergunta como pode encontrar a pessoa que ela veio encontrar.


O que vai sucedendo é uma série de pequenos encontros e situações que levam ao encontro com o pequeno ladrão, um garoto que lhe fala sua história, pede desculpas pelo furto e lhe pede ajuda.


Assim como D no primeiro jogo, Ashley descobre que o garoto também não consegue muito bem lembrar de seu passado e ele está em busca de seu pai desaparecido.


Coincidentemente, ela começa a ter flashes daquele lugar, pois já havia vindo com sua mãe ao lago quando era bem pequena.


Juntos, eles irão explorar o complexo, interagindo com as pessoas que ali moram e trabalham, a fim de desvendar o mistério do pai do garoto e as lembranças do passado da mãe de Ashley.


A principal diferença de Two Memories para o segundo capítulo é ritmo, natureza dos quebra-cabeças e ambiente. O ritmo da primeira parte é ditado pela troca de cômodos e exploração contínua da mansão. Já em A Journey into Lost Memories, o complexo é aberto e lembra um sítio de acampamento, rodeado pela natureza e cheio de construções como casas e prédios.


A exploração é mais lenta e frequentemente interrompida por cenas de diálogos que vão apresentando um elenco absurdamente mais vasto que o primeiro jogo. Temos guarda florestal, cientistas, diretores empresariais, adolescentes, residentes, empresários e funcionários de toda sorte de construções do complexo.


Diversos desses personagens possuem arcos próprios e dramas pessoais que vão sendo apresentados nas primeiras horas de jogo. Essas conversas introdutórias e papo superficial vão ocupando os primeiros capítulos com uma tonalidade informal e mundana.


Isso faz com que a trama principal demore a começar a caminhar e cria um senso de cotidiano comum forte que arrasta um tanto o andamento. Isso é algo que não é surpresa em adventures e visual novels japoneses justamente pelo apreço que o público tem com essa construção lenta dos eventos, dos personagens e dos relacionamentos entre eles.


É um uso muito maior de tempo para construir o desenvolvimento dos personagens e de suas tramas pessoais, estabelecendo motivações, personalidades e conexões entre a vasta gama de personagens.


Vale ressaltar que os dois jogos utilizam um sistema similar de representação gráfica desses relacionamentos, uma funcionalidade de um aparelho tecnológico que Ashley recebeu de sua mãe como uma espécie de legado, e que transfere a ela uma série de ferramentas para que ela possa descobrir seu passado e a verdade que lhe fora escondida por mais de 10 anos.


Nos jogos originais, os dispositivos recebidos por Ashley eram cópias diegéticas do hardware do Nintendo DS e do Wiimote, uma brincadeira dos desenvolvedores bastante recorrente na época. Aqui no remake, o dispositivo é criado à imagem e semelhança do próprio Switch, e ela o carrega entre as duas partes, reforçando a coerência da interface, já que ela utiliza o equipamento para acessar informações e ativar outros aparelhos eletrônicos.


No tocante aos quebra-cabeças, enquanto em Two Memories eles possuem uma maior engenhosidade em virtude do contexto ambiental, aqui em Journey eles são mais espaçados e mais simples, muitas vezes sendo uma mera interação sem muito o que pensar.


O próprio contexto de cada parte é de fato o responsável por isso, já que no primeiro capítulo estávamos em um ambiente todo preparado e controlado por um senhor idoso obcecado por quebra-cabeças intricados e passagens secretas, enquanto no segundo jogo estamos em um ambiente aberto e bem menos propenso a essas... traquinagens, por assim dizer.


Journey opta bem mais por usar suas interações para quebrar o fluxo de conversas constante e oferecer variabilidade de gameplay, ao ponto que às vezes parece que ele tem “medo” de recorrer a quebra-cabeças que não façam muito sentido no contexto. Mas ele não se furta de recorrer a momentos propícios para criar um bom puzzle criativo que confere micro doses catárticas ao jogo.


É algo que trabalha fortemente uma espécie de coerência ludonarrativa presente nos jogos da CiNG e que destaca a forte coesão que a duologia mantém do começo ao fim e que sempre foi uma característica muito forte da extinta desenvolvedora. Infelizmente não veio sem cortes e perdas. A antes mencionada marca da empresa, na forma das recorrentes recapitulações ao fim de cada capítulo se encontra ausente neste remake, infelizmente.


CONCLUSÃO

Tela de captura do jogo Another Code: Recollection
Reprodução: Nintendo

Another Code Recollection é, por fim, uma celebração em ambiente AAA de uma cultura que não se limita a jogos com uso de violência e ação frenética para contar histórias no meio gamer. Muito pelo contrário, reforça a riqueza que o gênero de adventure permite até os dias de hoje imprimir na criação de obras ludonarrativas que transitam entre literatura, animação e jogo.


E acompanhar o amadurecimento da protagonista ao longo desses dois anos de aventura é algo que vai crescendo com o tempo que você passa jogando a duologia e te arremata com sentimentos inenarráveis.


Acredito que esse seja o legado cultural de toda uma vertente de gênero que ainda vive e que tanto me encanta por sua infinita criatividade, engenhosidade e profundidade que talvez nenhum outro seja capaz de fazê-lo, seja na indústria ocidental, seja no Japão, especialmente pelos diferentes rumos e idiossincrasias de cada modelo, bem como as influências que inspiram desenvolvedores de todas as partes do mundo, não só dentro do próprio gênero de adventure, como na mistura perene que domina o ramo criativo dos videogames.


Agradecemos gentilmente à Nuuvem pelo envio da chave de Another Code: Recollection.


Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano)





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