Há um erro de concepção no imaginário coletivo ao pensar em The Talos Principle. Puzzle filosófico? Então são jogos de um gênero cabeçudo para pessoas interessadas em assuntos cabeçudos? Contudo nada poderia estar mais distante da realidade. The Talos Principle não quer ensinar a “Fenomenologia do Espírito” como um ensaio tradicional de Filosofia — apesar de que você pode aprender uma ou outra palavra nova no caminho. Na verdade, o jogo é um convite a ser cúmplice de Sócrates e beber de seu cálice por também questionar noções fundamentais da nossa existência de forma lúdica.
A filosofia, então, é uma ferramenta dada ao jogador como uma forma de interagir com seus desafios lógicos. O primeiro título da série questionou o que é um ser humano; no segundo, será abordado o que é a humanidade, com cada obra tendo também seus próprios subtemas a serem explorados. Cada um de seus conteúdos adicionais de história, incluindo a aqui analisada, funciona como forma de apresentar novos questionamentos derivados dos acontecimentos finais de seus respectivos jogos base.
Mas não é uma ferramenta que se esgota ao pensar a obra tematicamente, porque o ato de resolver um quebra-cabeças também é apresentado como semelhante ao de se colocar no papel de um filósofo ou filósofa. Quem já ficou preso em um quebra-cabeças complicado e, por isso, foi procurar sua solução na internet, sabe o quão comum é perceber que o desafio não era nem tão complicado assim, porém a dificuldade de se desvencilhar de uma solução que você já tinha na sua cabeça para tentar coisas novas te impediu de conseguir resolvê-lo.
Isso também é filosofia, ou seja, perceber que nosso raciocínio está sempre condicionado por algo. E, esse condicionamento não é só na hora de pensar a solução lógica para um problema específico, mas para pensar em qualquer coisa. Não é à toa que os próprios jogos da série são cheios de provocações nesse sentido.
Por exemplo, apesar de um dos pilares da narrativa do primeiro e do segundo jogo ser que os humanos foram extintos pelas mudanças climáticas que eles causaram, ambos são celebrações da humanidade onde os androides tomam para si a alcunha de “humanos”, herdeiros diretos daquela tradição. The Talos Principle 2 é uma visão otimista de uma humanidade — mesmo que de lata — que não se odeia e acredita que sua curiosidade e inventividade não precisam desembocar na destruição mútua de si e do planeta.
Como não havia escrito nada sobre os lançamentos anteriores da série em lugar algum, achei necessário esse preâmbulo para situar um pensamento central que existe na minha relação com a série. Dessa forma, agora posso seguir para comentar o que estava programado: a expansão recentemente lançada de The Talos Principle 2, Road to Elysium, contendo três histórias separadas e quais suas provocações.
ASCENSÃO DE ORFEU (ORPHEUS RISING)
Assim como na história de Orfeu, nesse primeiro conto fazemos uma viagem para salvar alguém que morreu, mas ao invés do submundo, mergulhamos nos restos de sua consciência e, diferente do poeta, não há nenhum deus grego para nos punir. Assim é apresentada o conto em sua cutscene inicial e, ao assumir o controle, estamos novamente na pele de 1K, protagonista do segundo jogo, para reviver Sarabhai, uma androide que morreu durante uma catástrofe na primeira tentativa de restabelecer a humanidade.
Em relação aos puzzles de “Ascensão de Orfeu”, trata-se de uma exploração da mecânica base dos lasers de Talos Principle à exaustão, só que pensando de formas fora da caixa e especificidades da propagação do laser e dos timings de ativação e desativação dos mesmos.
Para não se tornar confuso, essas especificidades - que nem mesmo eu que joguei ambos os jogos base tinha plena consciência - são apresentadas com desafios mais simples que, pouco a pouco, vão dando lugar a outros mais complexos. Como alguém que não gostou tanto da progressão irregular do segundo jogo, fui fisgado facilmente pela possibilidade de pensar os quebra-cabeças como esses conjuntos de progressão gradativos.
É interessante tematicamente essa limitação aos lasers ao pensar que, apesar de cronologicamente a história se passa após o final do segundo jogo, estamos dentro da mente de Sarabhai que morreu entre os acontecimentos dos dois títulos e não poderia saber da estrutura dos desafios preparados no segundo, transformando numa ótima oportunidade para experimentar ainda mais com os quebra-cabeças de laser que com certeza são um dos pontos altos da série.
Ao resolver cada puzzle, recuperamos um fragmento da consciência de Sarabhai, ouvimos um monólogo dela sobre suas noções de si e sua relação com a morte. Nas andanças pelo mapa encontramos terminais com textos explorando o tema do amor - afinal é o amor que levou Orfeu ao submundo - e mensagens trocadas entre Sarabhai e sua amada Hypatia com toda a breguice que a paixão permite.
Completados todos os quebra-cabeças principais, vamos ao desafio final, “Coração de Anúbis”: um puzzle de lasers dentro de uma esfera que de início parece ser intimidador, mas parece feito mais com intuito de ser uma experiência marcante ao final da história, do que um desafio complexo, o que é deixado para os três desafios dourados opcionais que são liberados após terminar esse último obrigatório.
ILHA DOS ABENÇOADOS (ISLE OF THE BLESSED)
Essa segunda história se aproxima estruturalmente da primeira. Temos alguns conjuntos de quebra-cabeças que realizamos para desbloquear um puzzle final que, novamente, não é difícil, mas é uma experiência marcante - só que dessa vez temos um cubo no lugar da esfera. No entanto, aqui temos todas as mecânicas e ferramentas do segundo jogo retornando para criar quebra cabeças que, em sua maior parte, conseguem alcançar um bom equilíbrio de dificuldade.
Também semelhante a primeira história da expansão, o amor está presente: dessa vez você é Yaqut, um dos personagens que te acompanham durante a expedição em Talos Principle 2, indo para uma ilha caribenha junto com família e amigos para passar suas férias algum tempo após os eventos do segundo jogo. Mas ao chegar, você se depara com uma enorme quantidade de puzzles para resolver na tentativa de impressionar sua namorada Miranda - sim, chegamos ao episódio de praia da franquia.
No entanto, essas são apenas as aparências, porque a ilha é na verdade uma enorme exposição de arte criada por um artista chamado Barzai. Todo o papo de impressionar Miranda é jogado fora no meio do caminho e você se vê em uma narrativa sobre resolver quebra-cabeças simplesmente porque é divertido, sem nenhuma amarra das necessidades de resolver algum conflito - mensagem que cada vez se torna mais importante num mundo que tem dificuldade de distanciar suas ações de necessidades utilitárias.
Dessa forma, pela primeira vez, os problemas lógicos não são para resgatar androides presos ou decidir o destino da humanidade. Eles são tão somente brincadeiras para o protagonista quanto são para o jogador. Este é o brilho de Ilha dos Abençoados e o que a fez se tornar a minha história favorita entre as três: todos os monólogos sobre a beleza daquilo que é inútil de Barzai, as lindas interações entre os personagens e a música perfeita para o clima relaxante.
ABISMO ADENTRO (INTO THE ABYSS)
É na terceira história que temos algo radicalmente diferente das outras duas. Primeiro, essa é a única das histórias que não se passa após Talos Principle 2, mas durante um acontecimento do segundo jogo: quando Byron, um dos seus companheiros de expedição, fica preso dentro da Megaestrutura, local chave que continha o segredo que possibilitou a continuidade da humanidade androide.
Apesar de manter semelhança com a segunda história por conter desafios utilizando de maneiras inventivas todas as ferramentas disponíveis no jogo base, diferencia-se muito por conter puzzles no nível dos opcionais das outras duas histórias - os quais não existem aqui - e nem há necessidade disso. Com certeza, o grau de dificuldade pode ser frustrante, mas a necessidade de pensar e planejar em cada problema torna sua resolução extremamente satisfatória.
A intensidade da dificuldade dos puzzles complementa-se por uma ambientação e narrativa tão intensas quanto, pois ao viajar entre as ilhas voadoras e ao completar seus desafios, tem-se como recompensa insights na mente perturbada de Atena, protagonista do primeiro jogo e peça central na história do segundo. É como se estivéssemos em um grande pesadelo da personagem onde o mundo reflete a fragmentação de sua mente.
Além de ouvirmos Atena destilando ódio sobre si mesma e suas ações, ouvimos personagens já conhecidos com as vozes carregadas de raiva e ressentimento em relação à ela, em algo que parece ser suas inseguranças em relação ao que os outros pensam dela. Essa abordagem torna Abismo Adentro um complemento interessantíssimo aos acontecimentos do segundo jogo, ainda mais para entender o que acontecia com Atena enquanto estávamos à sua procura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Espero que o texto tenha sido capaz de transmitir a forma que “Caminho para o Elísio” consegue renovar-se a cada história e trazer adições interessantes ao que é e ao que pode ser The Talos Principle. Cada uma delas demonstra uma intenção respeitável de não contar novas histórias apenas por qualquer razão, mas pensá-las como experiências fechadas que são únicas em como utilizam também sua ambientação e jogabilidade para proporcionar a quem joga algo diferente do que já foi feito.
Ainda por cima, há referências durante a expansão sobre o desejo de alguns personagens de explorar o espaço. Ou seja, pode ser que, se houver novas expansões (ou quem sabe um jogo novo) já é possível imaginar que a Croteam tem a intenção de levar a franquia a novas alturas. E se realmente acontecer, espero que continuem experimentando ainda mais com as possibilidades de relacionar o espírito filosófico com a arte de colocar peças no lugar certo por diversão.
Agradecemos gentilmente à Devolver Digital pelo envio de chave para análise de The Talos Principle 2 - Road to Elysium.
Texto editado e revisado por Felipe Lins (@ofelipelee) e Maya Souza (@ShinMayanese).
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