Se Gris nos ensinou sobre a perda da vida e como lidar com o luto, Neva chega para nos ensinar a como aproveitá-la. O segundo game da Nomada Studio demonstra a evolução e o amadurecimento dos seus desenvolvedores através do nível de produção da obra, desde a narrativa até o gameplay cativante.
Neva conta a história de uma mulher e sua loba, que dá nome ao título, que se veem tentando sobreviver em um mundo prestes a ser consumido. Tendo apenas uma à outra, a dupla tem que aprender a trabalhar juntas. Essa é a premissa básica por trás do jogo. Possuo muitos pontos a abordar, então vamos lá.
Gameplay
Sendo Neva, assim como seu antecessor, um jogo fortemente focado na experiência emocional do jogador, quero começar falando sobre seu gameplay e suas mecânicas, e por extensão, o combate. A intenção, aqui, é "tirar esse aspecto do caminho", para depois adentrarmos em aspectos mais abstratos, subjetivos e filosóficos.
Pois bem, não é novidade para ninguém a força e o poder emocional que Gris causou em seus inúmeros jogadores, mas se há uma coisa que ficou “faltando” em seu pacote, foi uma jogabilidade mais extensa. Isso não quer dizer que, se um jogo não usa todas as combinações possíveis do controle, ele seja ruim.
Trago esse ponto pois, no game anterior, senti que a Nomada Studio queria ir mais a fundo do que aquilo que nos foi apresentado, mas que nunca chegou ao seu potencial máximo. Gris tem puzzles, esquivas e elementos de plataforma, mas é em Neva que isso se expande de uma maneira grandiosa e, com certeza, criativa.
Logo no início do jogo, somos introduzidos às principais mecânicas que veremos ao longo da aventura, mas de maneira simples. A protagonista pode pular, esquivar, dar um salto duplo no ar e esquivar-se no ar também. Como eu disse, simples, mas a criatividade vem de como esses quatro comandos comuns interagem com o ambiente e o mundo.
Por exemplo, um dos maiores destaques para mim foi, particularmente, uma fase em que tudo é espelhado pelo gelo — plataformas, colecionáveis e até inimigos. Assim, o jogador precisa basear suas ações pelo mundo refletido.
Tecidos os elogios quanto à movimentação, é inegável que os puzzles do jogo são incríveis. Eles realmente trabalham a sua imaginação, mas nunca ao ponto de serem frustrantes. Para colecionistas (como eu), coletar todos os itens pode se mostrar uma tarefa recompensadora.
Em suma, o aspecto de exploração e platformer de Neva é uma evolução gritante do teaser que nos foi dado em Gris. Aqui, posso sentir a coragem e a determinação da Nomada Studio em entregar um loop de gameplay mais decidido. Não sinto mais a hesitação que pudesse existir antes.
Combate
Ainda que o sistema de combate se encaixe no gameplay, não poderia deixar de dar uma atenção especial para ele, pois é algo inexistente no jogo anterior. Esse aspecto é tão importante que até os desenvolvedores admitiram terem dedicado um esforço especial para aprimorá-lo.
Assim como os comandos de exploração, os botões de combate são simples. Você pode realizar um combo de até três golpes tanto no chão quanto no ar, podendo misturá-los. Além disso, há uma habilidade dedicada a invocar Neva para dar uma investida, podendo agarrar e derrubar inimigos para que você os finalize.
Vindo de um background com muitos jogos de luta, hack-n-slash e RPGs de ação, senti uma forte inspiração em Hollow Knight e jogos souls-like, ainda que não sejam tão complexos. O padrão de bater e esquivar flui extremamente bem, e os controles são responsivos. Fiquei muito contente com a adição desse elemento no jogo e torço para que o estúdio se aprofunde ainda mais nele em projetos futuros.
Arte
Arte é subjetiva, claro, e combate e exploração também fazem parte da obra como um todo. Mas aqui eu gostaria de falar um pouco sobre a arte "arte" no senso mais comum da palavra, e não vejo forma melhor de iniciar este tópico do que com as representações visuais de Neva.
Os jogadores de Gris sem dúvida já estão acostumados com cenas dignas de wallpapers em movimento, mas ouso dizer que ainda assim ficarão sem fôlego diante da grandiosidade artística de Neva. Numa nota pessoal, esses são os papéis de parede atuais dos meus monitores.
Bem ao estilo Berserk, não? Cuidado com os "PTSDs" do Eclipse! Não duvido nada que tenha sido uma das inspirações. Como dito pelos próprios desenvolvedores, em Gris eles optaram por um estilo artístico em aquarela, algo que se espalha, se mistura, e escapa das margens. Uma harmonia fascinante entre narrativa e visual.
Já em Neva, as duas linguagens se conectam novamente, mas através de um estilo mais flat, porém concentrado e delimitado dentro de suas linhas. Isso gera, como pode ser visto nas imagens acima, desde reações “fofas” com Neva brincando na grama até paisagens naturais surpreendentes e cenários medonhos e aterrorizantes, vindos das profundezas da imaginação humana.
Ciclo Natural da Vida
Pela minha interpretação, esse é o tema principal do jogo. Logo ao iniciar Neva, somos impactados com uma cutscene lindíssima que coloca a arte do jogo em movimento e, em seguida, sentimos um “soco no estômago” com a morte da mãe de Neva — uma criatura linda e majestosa, atacada pelas sombras que consomem este mundo.
Nossa missão é clara e direta: cuidar de Neva, uma criatura jovem e vulnerável. Inicialmente apenas uma filhote, Neva não conhece os perigos do mundo, e cabe a nós não apenas protegê-la, mas também ensiná-la a se defender, eventualmente fazendo com que ela se junte a nós no combate.
Equipados com uma espada capaz de combater essas criaturas, devemos sobreviver a uma natureza que, apesar de reconfortante em certos momentos, é também perigosa e implacável. Ironicamente, nos momentos finais do jogo, é Neva quem passa a te proteger, e não o contrário.
Curiosamente, o diretor do jogo, Conrad Roset, desenvolveu Neva na mesma época em que seu filho nasceu, ganhando uma nova percepção sobre a responsabilidade de cuidar de alguém que, um dia, cuidará de você. Essa é a beleza desse ciclo: você a protege quando ela é indefesa, e, para retribuir seu amor, ela passa a proteger você.
O jogo é dividido em quatro “fases”, cada uma representando uma estação do ano: verão, outono, inverno e primavera, nesta ordem. Ou seja, você passará quase um ano inteiro fortalecendo seu laço com Neva. E deixe-me dizer, você vai se apegar a ela — e muito!
É difícil evitar spoilers ao exemplificar o tema do ciclo da vida, mas o game transmite de maneira eficaz a ideia de que algumas coisas são inevitáveis (como a perda de um ente querido ou o nascimento de uma nova vida). A natureza é bela, mas também perigosa, e devemos aprender a coexistir com ela. E, acima de tudo, aproveite o tempo ao lado de quem você ama, pois o tempo é o maior inimigo da vida, e nada pode pará-lo. O relógio continua batendo, e em apenas um ano muita coisa pode mudar.
Sim, é um clichê. Mas é a forma como essa lição é transmitida que toca profundamente. Neva é apenas uma personagem no jogo, mas a intenção é que você a substitua por alguém especial em sua vida. No meu caso, é...
Jelly
Antes de seguirmos em frente, preciso apresentá-los brevemente à minha melhor amiga: Jelly. Atualmente, ela tem 13 anos, nascida em 14 de agosto de 2011. Adotamos Jelly quando ela tinha 3 meses, e desde então ela se tornou uma parte essencial da minha família.
Mas o que Jelly tem a ver com Neva? Bom, inicialmente, só o fato de haver um lobo na capa não seria motivo suficiente para eu incluí-la neste texto. Afinal, há cães, gatos e vários tipos de pets marcantes e icônicos em diversos games. Inclusive, eu mesmo não fazia ideia de que Neva tratava de um laço tão forte entre a protagonista e sua lobinha. Para minha surpresa, logo de início, o primeiro comando que o jogo te dá é:
Esse botão é usado durante o jogo inteiro para interagir com Neva: seja fazendo carinho, chamando-a quando se distrai com outros animais, ou buscando-a quando você a perde de vista (para o total desespero do jogador). Logo eu entendi: nesse jogo, você cuida de um "doguinho"! E, embora no início pareça exatamente isso, o jogo vai muito além.
O ponto é: durante todo o tempo que passei jogando, do começo ao fim, eu não conseguia parar de pensar na Jelly. Não por estar preso a uma única ideia, mas porque, conforme progredia, os elementos da narrativa serviam como lembretes constantes de coisas que vivi com ela. Assim como o par do jogo, em momentos bons e ruins, altos e baixos dos últimos 13 anos, Jelly estava sempre presente. Ela era um pilar no qual eu podia (e ainda posso) me apoiar. Sempre senti que ela entendia quando eu estava triste, deitando-se na porta do meu quarto e se recusando a sair até que eu a deixasse entrar. Para mim, é quase impossível não me ver no lugar da protagonista e ver Jelly como Neva.
Quando paro para pensar que a conheci com 11 anos e hoje tenho 24, fico chocado ao perceber que ela viveu comigo durante toda a minha adolescência e agora quase metade dos meus 20 anos. Não sei quanto tempo nossa parceria ainda durará, mas sei que minha memória dela viverá comigo até o último suspiro.
Inspirações e Referências
Para encerrar, gostaria de falar sobre várias referências (algumas mais óbvias que outras) espalhadas pelo jogo. Duas que foram confirmadas pelos desenvolvedores são os jogos da saga Souls da From Software, o que fica imediatamente perceptível pelo sistema de "bate e esquiva", além da atmosfera que, em certos momentos, é deslumbrante e, em outros, sombria e intimidante.
Outra inspiração são os longas-metragens Princesa Mononoke (1997) e A Viagem de Chihiro (2001), ambos do Studio Ghibli. Isso é claro ao observarmos o design das criaturas inimigas:
Essas foram algumas inspirações confirmadas pela Nomada Studio, mas... Dito isso, vocês não acham que a imagem acima lembra outro jogo com essa estética de natureza bela e imprevisível? Observem bem:
Estou me referindo a Shadow of the Colossus (2005), lançado originalmente para PlayStation 2 e desenvolvido pela Team Ico. Pode-se argumentar que é uma conexão frágil, associando os jogos apenas pela luta contra criaturas grandiosas. Mas as semelhanças vão além disso: quando você chama Neva e ela está perto, a voz da protagonista é calma e reconfortante. No entanto, quando a loba está distante, o tom muda para um grito de preocupação, e, se ela está fora de vista, torna-se um assobio alarmante. Isso não lembra a relação com Agro, a fiel égua do protagonista? A trilha sonora também remete muito ao jogo de 2005.
Por fim, deixo aqui o vídeo original sobre o desenvolvimento de Neva, contendo ainda mais entrevistas e curiosidades com a equipe da Nomada. Vale destacar o comentário do entrevistador sobre as duas maiores inspirações do título, os dois Miyazakis: Hayao (Ghibli) e Hidetaka (From Software). Achei esse comentário valiosíssimo! Recomendo muito que assistam:
Conclusão
Neva é um jogo a ser sentido, experienciado por completo, da forma mais pura e simples. Sei que cada pessoa que navegar essa jornada até o fim terá uma resolução individual e única para si mesma. Posso falar apenas por mim, mas, ao ver os créditos rolarem, abracei Jelly e desejei passar ao lado da minha melhor amiga o máximo de tempo que nos resta, seja lá quanto for.
Agradeço a todos por lerem este texto que, sinceramente, foi doloroso de escrever. Encerro com uma arte lindíssima de Neva e Gris, criada pelos talentosos artistas da Nomada Studio, representando respectivamente a vida e o luto após o seu fim.
Agradecemos gentilmente a Devolver Digital pelo envio de chave de Neva para análise.
Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano).
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