"Em um futuro distante, HUMANOS e a INTERNET se fundiram em um novo ser. Esse novo humano precisa de DOPAMINA a cada 10 SEGUNDOS senão ele morre!"
O jogo que eu mais esperava ser lançado em 2024 chegou, e eu confesso que tinha medo, medo de ter a minha admiração violada. Em casa, fui criado à base de filmes de ação, principalmente os protagonizados por clássicos como Sylvester Stallone, Bruce Willis, Arnold Schwarzenegger, Tom Cruise e companhia. Eram os arautos da masculinidade, dos corpos torneados, tiroteios desenfreados e donzelas em perigo.
Exterminador do Futuro, Dredd, Robocop, Missão Impossível, Duro de Matar, Rambo, Busca Implacável, todos necessários para graduação na escola "Pai do Hyliano" de filmes, mas essas referências geralmente vinham acompanhadas de uma bússola moral, idealização dos "bons costumes" e uma espécie de continência aos "fodões da antiga geração que não se fabricam mais".
Quando me deparei com a estética "synthwave", anime dos anos 90, e um protagonista "fodão" em perseguições de carro e tiroteio contra robôs em busca de salvar uma mulher sequestrada, eu vibrei pelo que já tinha aprendido a amar antes, mas o meu maior medo ainda estava lá: Mullet MadJack aparentava ser um prato cheio de produto incel em consagração ao homem másculo. Eu não poderia estar mais errado, e como eu amo quando isso acontece!
O jogo de estreia da Hammer95 Studios é uma adaptação da proposta do FPS de ação rápida Post Void, em um mundo impecavelmente construído. Aqui, a sociedade é controlada por robôs super ricos e egocêntricos chamados "robilionários", e aqueles que ousam sobreviver para matar esses robôs são chamados de moderadores.
Nosso protagonista é Mullet, um moderador que recebe a missão de resgatar uma influenciadora com bilhões de seguidores que foi sequestrada e levada para um prédio lotado de robôs bilionários. Aparentemente, a vida dela vale muito, e o prêmio pelo seu resgate é o par de tênis do momento que tanto desejamos e não temos dinheiro para comprar.
O objetivo dos robilionários é utilizar o sangue da influenciadora para replicar todas as formas de rituais possíveis e registrados, a fim de descobrir se existe uma vida após a morte, um deus, demônio ou o que quer que seja.
Porém, em total desvantagem, a sobrevivência de Mullet depende das doses de dopamina liberadas no formato de "curtidas" dos espectadores que acompanham nossa literal corrida contra o tempo de 10 segundos. Para manter a dopamina no sangue e consequentemente a sobrevivência de Mullet, devemos matar qualquer robô que vemos pela frente. É a pura indústria do entretenimento aliada ao conceito de descarte do indivíduo, uma proposta bem parecida com "Akimbo", filme protagonizado por Daniel Radcliffe, e a franquia "Adrenalina", de Jason Statham (não assistam a essa atrocidade).
Acontece que só o fato de poder colocar uma bala na cabeça de bilionários já era capaz de elevar Mullet MadJack a um status sacramental no meu catálogo de jogos favoritos, mas ele vai além, trazendo discussões mais profundas e críticas sociais tão pertinentes quanto o acúmulo de capital, e tudo isso usando o estereótipo dos heróis dos clássicos filmes de ação, o que inclui as frases charlatãs e performances lascivas que, pasmem, são engraçadas, bem construídas e não ofendem mulheres e minorias.
Requer coragem o (re)sequestro de ícones produzidos entre os anos 60 e 90, tão idealizados no imaginário incel, para discutir temas como transumanismo, imperialismo, inteligência artificial, dependência de redes sociais e relegação do entretenimento ao status de produto, como se a própria arma das gerações conservadoras e seus frutos fosse utilizada contra eles, uma prática muito comum protagonizada por neonazistas e incels que transformam símbolos da cultura geek e pop em "apitos de cachorro" para suas causas doentias.
Eu nunca vou perdoar terem transformado o copo de leite em Laranja Mecânica em um símbolo supremacista, que respingou na abertura do meu querido Conker's Bad Fur Day.
Em Mullet, o saudosismo não é um instrumento de vilificação do indivíduo que sente saudades do passado, mas sim uma ferramenta para mostrar que, mesmo quem retém carinho por produtos de sua época, também é capaz de criticar os abusos advindos das novas gerações. O mundo não precisa voltar a ser como era antes, e os heróis da cultura boomer não merecem ser relegados a um nicho patriarcal, machista, truculento e imperialista. Eles podem, e precisam ser sequestrados para criação de obras valiosas como Mullet MadJack.
Mas, como eu disse, as críticas não param por aí. Em um hipotético mundo em que não se consegue comprovar a existência de entidades paranormais, os robilionários se autointitulam como deuses desse mundo, diante do acúmulo irrefreável de capital. Se o dinheiro, como conhecemos, é sinônimo de poder, quem estaria acima deles? Talvez uma katana de fogo que podemos arremessar para arrancar suas cabeças, e é aí que entra a magia de Mullet.
O jogo é estruturado na mecânica roguelike e sua progressão se dá ao subir andar por andar do prédio Nakamura Plaza, o que significa um total de 82 fases, enquanto adquirimos armas e melhorias para Mullet. Se falhar, você volta para a primeira fase, com um checkpoint garantido a cada 10 andares e uma luta sensacional contra um dos chefes do jogo.
Dentre as armas disponíveis para macetar robôs na bala, temos pistolas, metralhadoras, fuzis, armas lasers, escopetas e katanas, cada uma com suas respectivas melhorias e particularidades. Dentre as melhorias, temos aumento de tempo de vida, modificações no ambiente, pulo duplo, aumento de velocidade de movimento e muito mais.
Quando joguei a demo, achei que o jogo não seria capaz de se equiparar em dificuldade com Post Void, por conta das melhorias e da estrutura linear dos 20 primeiros andares, mas na versão completa de Mullet MadJack, as dificuldades disponíveis para seleção, aliadas com a estrutura dos andares seguintes, me fizeram metaforicamente “morder a língua até sair sangue”. Demorei entre 7 e 8 horas para conseguir passar do sexto capítulo. O resultado foi uma carga de estresse contra robôs artificialmente inteligentes e uma sensação quase palpável de satisfação por ter destruído cada um deles com as próprias mãos. Mas não se preocupe, o jogo oferece diversas opções de dificuldade, que facilitam e muito o progresso.
A sanguinolência e a brutalidade que acompanham as execuções gloriosas e fases extras (sem spoilers) são elevadas pela trilha e efeitos sonoros, que nos presenteiam com o melhor synth pop. Fernando Pepe e Mateus Polati transcendem ao darem vida ao jogo através da qualidade sonora presente.
Existe um vídeo muito interessante (que deixarei a seguir) explicando a teoria por trás da provocação nostálgica de músicas como "Ressonance - Home", que nos fazem sentir saudades de uma vida que não vivemos, ao invés das lembranças que temos de quando éramos pequenos. Em Mullet, essa é exatamente a sensação transmitida não só pela música: tudo cheira, exala e tem gosto de nostalgia.
Frases com referências de filmes antigos, videogames arcades, animes dos anos 90, retrofuturismo, bichinhos virtuais, tudo está ali, nos abraçando e nos convidando a fazer uma viagem pelo passado, principalmente porque são essas coisas que mantêm (literalmente) a vida de Mullet, fazendo parte da sua construção não só como personagem, mas como reflexo de gerações que nasceram entre os anos 60 e 90.
Vale dizer que é notável, no contato superficial com a obra, que a maior crítica reside na rapidez e escassez proporcionadas pela cultura dos vídeos curtos e do consumismo, mas não se apegue somente a isso, Mullet MadJack tem diversas camadas para se explorar além da "simples" crítica ao TikTok.
Por fim, fico grato e extremamente feliz de saber que estamos falando de uma obra brasileira, feita por dois desenvolvedores, Alessandro Martinello e Leonardo Zimbres, que certamente se consagrarão em um futuro próximo no mundo dos jogos.
Mullet MadJack é produto da nossa cultura e da vivência de quem conviveu conosco, reproduzindo e reivindicando com muito carinho diversos elementos que fizeram e fazem parte das nossas vidas. Apreciem sem moderação, e não se esqueçam da regra das 3 conchas na hora de ir ao banheiro!
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