
O café começou a ser cultivado na Etiópia, onde era consumido de diferentes maneiras; seja por ingestão do fruto, mastigação, infusão em chá de suas folhas ou destilação para criação de uma bebida alcoólica. Esse consumo começou, aproximadamente, em meados do século VI d.C. e somente oito séculos depois, no sul da Europa, surgiu o processo de torrefação que resultou na bebida que é a paixão de muitas pessoas ao redor do mundo, indo de um ritual religioso para alguns povos à bebida "social" em outros.
Se você está lendo esse texto, sabe que o café fora a principal atividade econômica brasileira durante o século XIX até, pelo menos, a Era Vargas. Hoje, o café está presente em toda família brasileira, e faz tão parte da nossa cultura quanto alimentos como a mandioca e a feijoada. Você pode fazer seu café em casa, ou tomar um pingado em alguma padaria/lanchonete ao caminho do trabalho; até fazê-lo na própria copa da empresa, onde ganha seu pão. Se você gosta de café, você vai beber um pouco de café, em algum momento do seu dia.
Dito isso, num país que é tão ligado à cafeicultura, e seu modo de produção, é de se admirar que companhias como a Starbucks, responsável por 27.7% da porcentagem de mercado de café nos Estados Unidos, tenham falhado no Brasil. Sabemos perfeitamente os motivos pelos quais o modelo de negócios da rede de fast food foi malsucedido, mas não deixa de ser um case muito interessante! Especialmente quando se torna possível relacioná-lo à graphic novel Kophee, de Guilherme Match.
kophee e suas inspirações

Comprei Kophee durante o Prime Day de 2024. Fiz uma dobradinha dele com Soundtrack, outra HQ que pretendo trazer aqui como material de análise. Me tornei apaixonado pela obra de Guilherme Match de uma maneira que há muito não acontecia, talvez apenas com obras do Quintanilha. A experiência de ler essa viagem cyberpunk – volto a isso aqui em alguns parágrafos, fique atento – foi tão viciante quanto um café bem coado; eu me conectei de maneira pessoal com essa história.
Desde o traço obviamente inspirado (e o autor admite beber dessa fonte nos posfácios) na arte de Jamie Hewlett e seu trabalho excepcional em Gorillaz, até os momentos em que a história é interrompida em prol de uma aula sobre os diferentes métodos de infusão do café; tudo parece ter sido feito sob medida para mim, Max.
Aliás, interrompida parece ser um termo inapropriado para esses momentos. Kophee é SOBRE o café, e não adjacente a ele.
Na história, Ink, um jovem entregador de uma cidade não específicada, se esconde no MONO, uma cafeteria que serve seu produto à moda antiga num período em que os consumidores, totalmente doutrinados pela megacorporação OMNi Corp, preferem consumir a bebida servida em máquinas de venda – e são bem enérgicos quanto a esses tipos de tradição popular. Ink, na realidade, se escondia após impedir o assassinato de um velho vendedor de lámen por alguns desses fanboys aficionados por bilionários, caçando e buscando eliminar qualquer tipo de cultura popular que resista a essa nova estrutura de consumo.
O contraponto é justamente através da relação de Ink com Mali, a balconista da cafeteria, e como esses personagens se conectam e evoluem através da transmissão da cultura do café um para o outro. Algo que me faz pensar muito em Kophee é sua estética cyberpunk. É um ponto de estudo muito interessante as relações das graphic novels de Match com as de Katsuhiro Otomo. Akira traz em sua composição um Japão distópico abatido pelos ataques nucleares e marcado por uma juventude perdida e delinquente sem nenhum tipo de propósito de vida. Kophee se aproxima dessa abordagem, mas afastando-se da radiação e dos elementos fantásticos do mangá, que pouco se relacionam com o método de contar histórias de Match.
a estética cyberpunk por quem entende

O contexto de Kophee tem mais a ver com as grandes metrópoles do Brasil mesmo! Carregando em seus argumentos espaços urbanos tradicionais sufocados pelas grandes corporações e jovens proletariados tentando sobreviver de maneira honesta em meio a essas ideias. Ink é menos Kaneda e mais Galo de Briga, mas seus inimigos não são somente os grandes poderes que se impõem sobre nós e sim algo novo, também perigoso.
Parte do ofício de um desenhista no cotidiano é defender sua obra de uma série de detratores. Não exatamente pessoas que odeiam suas criações, pelo contrário, indivíduos que observam o resultado final e desvalorizam cada segundo de trabalho ali investido, seja a galera do “deve ser fácil porque você tem um talento” até quem se recusa a pagar os preços que os artistas praticam porque “como assim vou pagar duzentos reais pra uma pessoa fazer um desenho pra mim?” já que a lógica de se pagar tão caro por um produto que não agrega tanto o capital é um ultraje para certas camadas da sociedade.
Todavia, seria fácil de ignorar o pessoal que não entende o valor da sua produção quando estes não tem o poder de barganha, afinal, "e daí que esse idiota acha que o que eu faço é brincadeira, se ele quer a ilustração, é comigo ou com ninguém". Então surgiram as IAs generativas. Agora convivemos nessa realidade distópica em que a prática de se produzir arte pode ser realizada por bots inanimados que disputam espaço com artistas profissionais.
Agora eles têm o poder.
E não é só na arte que esses movimentos de criações enlatadas substituem a cultura urbana nas metrópoles. Estou cansado de ver notícias dos espaços tradicionais do centro de São Paulo fechando e, meses depois, estabelecimentos sendo substituídos por uma Oxxo ou qualquer lugar similar. Oxxo que é envolvida em diversas acusações de uma série de delitos e que claramente não faz bem para essas comunidades como os antigos estabelecimentos faziam, a exemplo do caso do jovem Gabriel Renan da Silva Soares, sobrinho do lendário rapper Eduardo Taddeo da Facção Central, assassinado na frente de um dos estabelecimentos por um policial militar.

Justamente por esse motivo, Kophee se relaciona fortemente com a contemporaneidade. Mike Pondsmith, criador do sistema de RPG de mesa Cyberpunk, define São Paulo e Rio de Janeiro como as cidades que melhor representam o ideal do gênero, e mesmo que Match não esteja exatamente tirando inspiração na minha cidade – na realidade, o autor é curitibano –, o estado atual das relações de trabalho e política a nível nacional se aproximam muito das descrições visuais dos ambientes de Kophee.
O gênero de cyberpunk foi se transformando à medida em que a distopia descrita há quarenta anos por William Gibson em Neuromancer, se aproxima da culminação do projeto neoliberal pelo mundo. Hoje, o cyberpunk perde sua posição política e torna-se cada vez mais acrítico, sua estética esvaziada de significado. Quantas obras “cyberpunk” saem todos os anos e não demonstram qualquer interesse em atacar o status quo? Quantas artes assim foram geradas artificialmente desde o advento do Midjourney?
Kophee pensa o cyberpunk de maneira diferente. Não existem tecnologias ultra-avançadas, cartazes neon e meninas de cabelo colorido. Na realidade, Kophee é de fato uma culminação dos pensamentos de Gibson e das ideias que formaram o gênero em sua raiz, mesmo que não se apodere de uma estética. Até porque, mesmo se posicionando em um futuro próximo, as coisas estão cada vez mais distópicas no capitalismo tardio.
Com genocídios televisionados, cidades mais informatizadas escondendo de maneira higienista a realidade daquelas populações e uma luta ferrenha entre os poucos defensores do povo e os aparatos de defesa do capital, sejam eles institucionais ou somente parte de uma massa conquistada por um discurso raso que, de alguma maneira, cola com eles. Exatamente por isso, é interessante ver como Match retrata e conduz a sua análise acerca da cultura em si.
minha história com o café e o valor da cultura

Estive visitando algumas cafeterias próximas à minha universidade a fim de entender um pouco mais de como funcionam esses estabelecimentos. Não havia cafeterias de fato em Santa Isabel, lugar onde nasci, então realmente nunca frequentei tais espaços, mas me apaixonei pelo conceito de um estabelecimento especializado em receitas especiais com café após uma visita a Guararema durante um dia das mães.
Não é como se não tivesse apreço pela parada desde pequeno, na realidade, era o contrário. Durante minha adolescência, acordava meu pai às cinco da manhã antes de sair para a escola, apenas para tomar um bom café antes de passar quarenta minutos num ônibus até o centro da cidade. Mas queria entender qual era a força desses lugares especializados na bebida.
E, de fato, há uma mística bem especial no café feito por profissionais. Observar cada movimento, cada técnica empregada no produto final que estará presente em minha xícara dá uma sensação acalentadora de aconchego. Os aromas desses ambientes me levam de volta aos meus cinco anos de idade, observando enquanto minha avó Clemência se preparava para o trabalho e deixava a água ferver enquanto tomava banho, ou quando ia jogar videogame com meu primo e sentia aquele aroma característico de café, bolacha de sal e cigarro que associei à tia Sueli durante os quinze anos em que a tive em minha vida. Kophee parece dar valor a esses momentinhos.

Quando a Mali chega em MONO para pedir tutela ao sensei, sua tentativa fora recusada, em grande parte por observar a cultura apenas como uma técnica, como uma prática a ser aperfeiçoada pelo acúmulo de conhecimento sobre ela. Não adianta ter um interesse tão intenso em aprender sobre o crafting quando o que realmente importa é o coração daquilo que se está produzindo.
Muitas vezes em minhas aulas da universidade já fui repreendido por ter produzido a partir de algum briefing de maneira tecnicamente impecável, mas que não se comunicava de fato com o público ao qual era desejada a comunicação. Meu objeto de estudo é a criação publicitária, a propagação de ideias de maneira satisfatória, usufruindo de táticas de convencimento através da comunicação. Meu produto de nada serve se não apelar para a massa que se deseja alcançar.
Match entende isso como ninguém ao capturar sua atenção para a prática de se produzir café. Numa história que se passa em cinco dias divididos em capítulos, cada dia terá ao menos uma página inteiramente dedicada ao preparo da xícara que Ink deverá beber, tudo explicado nos mínimos detalhes por Mali. A reação de Ink ao consumir o resultado final também é sempre enfatizada, assim como suas análises e observações acerca do que acabou de consumir.
E é exatamente por isso que a Starbucks não funcionou no Brasil

Se fosse pelo preço, essas cafeterias de São Paulo já estariam há muito fechadas, até porque, se seu negócio não está bombando na capital, ele está muito próximo da falência. Inclusive, gastei uma bela grana para fazer esse texto, esses lugares são caros. Estamos num país que se baseia culturalmente em produção, exportação e consumo interno de café. Em nenhum momento a cultura brasileira seria moldada a fim de alterar alguns costumes, e sem dúvidas o consumo de café não é uma prática que estamos dispostos a abrir mão.
O café em copinhos de plástico e isopor não serão de maneira nenhuma populares aqui, mesmo colocando o nome da pessoa no copo com caneta pilot! Redes de fast food como o McDonald’s se adaptaram ao método brasileiro de consumo, mas a Starbucks não o fez e acabou sofrendo as consequências e rejeições por qualquer consumidor que não estivesse interessado em fazer cosplay de gringo por aí.
Esse caso me dá muito o que pensar no quesito de cultura popular; o Brasil vem desde sempre sofrendo com o apagamento de sua identidade em prol dessa imposição do estilo de vida estadunidense, mas essa identidade da cultura brasileira continua se adaptando a esses avanços imperialistas.
Nosso maior movimento cultural durante a ditadura militar, o tropicalismo, baseava-se em adicionar elementos da cultura brasileira no que vinha para cá pelo exterior. Nosso hip hop é muito mais próximo do samba do que das influências externas. A arte brasileira é especialista em resistir e se adaptar a essas tentativas de sufocamento, e mesmo que Kophee termine deixando bem claro que a tendência é ser derrotado pelas grandes corporações que ocupam o espaço desses pequenos projetos… bom, a luta é o que nos mantém vivos.
Texto editado e revisado por Alexandre Avatics e Maya Souza
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