Se você, assim como eu, gosta de explorar o universo de jogos obscuros japoneses e ver todo o tipo de coisa que eles lançam, provavelmente já ouviu falar sobre o projeto The Simple Series, que foi uma das ideias mais legais que aconteceram no geral dentro da indústria de jogos. E apesar de não ter jogado nem um porcento considerável deles (mais por conta de não ter como do que falta de vontade), esse ano eu tive oportunidade de experimentar a versão atual de duas das séries que conseguiram sair do selo The Simple Series e conquistar sua própria legião de fãs, sendo então: Earth Defense Force e Onechanbara. Na maioria dos casos o consumidor comum veria isso como eu gastando dinheiro em jogo japonês com orçamento pequeno, o que não tá totalmente errado, mas sabendo todo o contexto por trás da existência desses jogos temos algo até que bem interessante para trabalhar em cima e nessa matéria eu queria apresentar para vocês o mundo de The Simple Series, Kusoges e como os dois representantes desse projeto se saem hoje em dia fora da proteção de uma regra.
Death Crimson, um Kusoge de Sega Saturn e Arcade conhecido por abraçar a estranheza.
Antes de explicar o que foi esse projeto, para deixar tudo mais claro é preciso ter uma ideia geral do que seria um jogo Kusoge. Kusoges são jogos ruins ou com um fator muito ruim mas que acabam tendo um charme único e a sua leva de fãs. Porém, nem todo jogo ruim necessariamente se enquadra em um Kusoge, é meio estranho definir que você reconhece um por conta do charme dele mas quando alguém se depara com um da para saber que é. Eles também são geralmente jogos de baixo orçamento, bugados e até tem uma categoria própria em jogos de luta, onde Kusoge lá representa os que são totalmente quebráveis, fáceis de dominar e praticamente impossíveis para um cenário competitivo mas que conseguem ser bem divertidos. O que é curioso é que Kusoges acabaram sendo abraçados e virando até algo meio artístico na indústria japonesa por conta da liberdade que um jogo assim oferece para os desenvolvedores, com muitos abraçando e tentando lutar por esse espaço ao invés de tentar focar em um parâmetro de qualidade que a indústria propõe. E mesmo que atualmente o Japão esteja em "crise" com esse gênero por conta do mercado mobile, e as empresas que os faziam não tendo mais interesse nenhum neles, é um meio que é fácil entender como as pessoas se apaixonam. E mesmo que The Simple Series não seja um projeto focado em produção de Kusoges, vários estúdios aproveitaram a chance para brincar com o desenvolvimento de um.
OBS: Com a lista dos jogos dessa Gamepass da PlayStation (pelo menos do mês de Junho) da pra ver um número gigante de Kusoges atuais nela e isso pra mim é o melhor e único motivo plausível para assinar ela. Torcendo aqui para conseguir jogar Mitsurugi Kamui Hakae.
A D3 Publisher até lançou um jogo de luta com base nos sucessos do The Simple Series.
A D3 Publisher durante a era do PlayStation 1 veio com uma ideia, um projeto em que eles publicariam qualquer jogo que custasse 1500 yens em seu orçamento, cuidando de todo o resto para deixar as empresas envolvidas brincarem e daí surgiu o The Simples 1500 Series, focando mais em jogos de tabuleiro e algumas licenças de animes que a D3 Publisher conseguia, não era algo muito grande e nem teve muitos mas o retorno foi bom o suficiente para eles apostarem nisso na próxima geração, subindo para 2000 yens no desenvolvimento e esse pequeno aumento liberou mais de centenas de jogos com todo tipo de mecânica e ideia, principalmente no PlayStation 2 que foi onde eles tiveram a sua época de ouro. Por serem jogos com pouquíssimo custo (o equivalente a 100 reais hoje em dia) e com todos os problemas burocráticos resolvidos, todo time de desenvolvedor pequeno no Japão, brincou como queria usando seus gostos e ideias que normalmente não venderiam. Yoko Taro uma vez disse que existe uma linha de jogos experimentais que são impossíveis de existir fora do cenário indie porque nenhuma empresa aceitaria publicá-lo, e em The Simple 2000 Series eles se aproximaram bastante disso. Os jogos variam muito de qualidade e foco, temos Kusoges para todos os gostos, jogos narrativos, ideias de design que são expandidas com o tempo e até jogos mais complexos que até foram lançados fora do Japão. A única coisa triste desse projeto é que por conta da sua natureza de nicho do nicho, tem vários que foram perdidos e dificilmente veremos alguma rom para experimentar as bizarrices que algum japoneses planejaram.
Mas algo importante desse projeto e dos jogos específicos que vamos falar é as influências. Com uma oportunidade de fazer um projeto assim, vários estúdios viram isso como chance de brincar com conceitos que apenas filmes B, animes bem exagerados ou tokusatsus conseguiriam lidar melhor, com Escape from bug island e Street Boyz sendo bons exemplos. O primeiro sendo um Survival Horror com plot de filme de terror B e que até conseguiu uma versão mais recente no Wii que teve até um pouco mais de polimento; já Street Boyz é um OVA sobre banchos (delinquentes japoneses estilo Jotaro Kujo e Yusuke Yurameshi) caindo na porrada com uma gimmick específica de poder usar qualquer objeto para bater em alguém. Eram ideias bobas e charmosas que na mão do time certo acabavam criando jogos até que bem decentes e é uma pena ver que o projeto não conseguiu andar mais depois do PlayStation 2, mesmo com o PS4 tendo até alguns jogos sobre o selo. Mas algo legal que aconteceu para compensar isso, é que alguns jogos pelo seu sucesso inesperado acabaram ganhando uma chance de se transformarem em franquias e sair do selo, com os dois maiores exemplos sendo o tópico desse texto.
A Sandlot por muito tempo tentou replicar em vídeo game a experiência de um civil em uma batalha de tokusatsu ou mechas mas sem muito sucesso por não saber como executar (apesar que um time recentemente conseguiu e até com licenças de vários clássicos). O primeiro jogo que conseguiram lançar sem cancelar por conta dessa dificuldade foi R.A.D, Robot Alchemic Drive que pega esse conceito e da mais urgência para o player em um anime mais "pé no chão" sobre mechas lutando contra kaijuus. Com a oportunidade oferecida pela D3 Publisher, eles conseguiram lançar Earth Defense Force, em que você faz parte de um time militar que veio praticamente de Ultraman lutando contra insetos gigantes invadido a Terra enquanto escolhe de uma variedade de classes e armas. O que gerou uma franquia com mais de 10 jogos baseados nesse conceito com o sexto da linha principal sendo anunciado para esse ano. Por conta que a D3 Publisher liberava sequências, alguns desenvolvedores aproveitaram e fizeram o primeiro jogo como uma demo para testar conceitos e ver o que funcionava e Earth Defense Force 2 por conta disso é considerado um dos clássicos do console. E a Tamsoft graças a XSeed Games e D3 Publisher conseguiu fazer um musou sobre garotas samurais cowboy vampiras de biquíni matando zumbis virar uma franquia de Character Action que até fez o feito de ser o único jogo do subgênero no PSP e ter dois filmes Live Action, por exemplo. Toda essa ideia de acompanhar como um teste de um projeto bem baixo orçamento se transformou em uma franquia que se mantém ativa até hoje e ver como ambos se mantém sem a proteção do selo da D3 Publisher é bem interessante para mim e é por isso que joguei exemplos recentes de ambos e nesse texto vou mostrar um pouco desse lado ainda mais obscuro dos jogos japoneses mas que merecem todo carinho possível.
To save our mother earth from any alien attack! - Earth Defense Force
Quando eu joguei Earth Defense Force 2025 pela primeira vez, eu vi tudo como um jogo de tiro simples mas bem divertido. Agora que eu ja corrompi minha alma com todo tipo de jogo possível e decidi brincar com Earth Defense Force 4, acabei me deparando com um dos meus TPS favoritos e provável que o melhor cooperativo que eu joguei. Mas estamos indo rápido demais. EDF 4 começa e apresenta sua história de jeito simples, após anos de paz depois de derrotar os alienígenas, houve um ataque no meio do Japão dos insetos gigantes e para piorar, agora eles estão muito mais resistentes e cabeça a EDF expulsá-los do planeta de novo. Tudo isso em 89 fases e 98 para quem joga no online, que vão variando e ficando cada vez mais dignas de um final de Ultraman conforme o tempo tanto em questão de apresentação da história quanto do desafio que você pode encontrar em algum dos níveis. A franquia segue um estilo meio Yakuza, em que os jogos usam várias bases parecidas mas se expandem e diferenciam demais quando querem do anterior apesar de manter similaridades para suavizar a produção e focar em outros aspectos. É tudo apresentado de um jeito bem bobo mas que vai conquistando o jogador pelo quão charmoso e honesto tudo aquilo é ao ponto que quando o jogo quer ser épico, ele realmente consegue. E pelo visto Earth Defense Force 5 conseguiu ser ainda melhor nesse aspecto e o 6 parece igualmente decente. Agora, indo a fundo na gameplay.
Earth Defense Force 4 (2013)
EDF segue a mesma regra de Level Design de Half Life 2: o melhor jeito de apresentar a maioria das mecânicas pro jogador é na prática. Os níveis começam simples, apenas com as formigas e você tentando controlar o caos sem muita ajuda da IA e conforme você vai seguindo, eles usam até a historia para indicar as desvantagens e vantagens de cada classe comparada aos aliens que você enfrenta. E pelo jeito dinâmico e caótico das missões isso tudo ocorre de um jeito muito bom enquanto te prepara para situações mais difíceis e até um pouco ridículas. Tem horas que você e seu batalhão terão que entrar em um ninho que é lotado com os insetos gigantes e precisa varrer o lugar, momentos em que a invasão começa pelo ar e o jogador precisa esquivar de todo tiro possível enquanto tenta lidar com as naves voando e as envolvendo mechas lutando contra Kaijuus. E isso é algo que me surpreendeu bastante, com um jogo nesse estilo você não esperaria normalmente tanto carinho com o Level Desing e formas de educar o jogador, mas a Sandlot consegue fazer isso com maestria e ainda entrega cenários bem feitos, são detalhes simples mas que realmente fazem você sentir que está no Japão em uma luta pela Terra contra invasores alienígenas. Para os mais interessados em Level Design e toda a forma que a campanha de EDF 4 consegue aplicar, eu recomendo bastante jogar com isso em mente.
Earth Defense Force também me surpreendeu em como as suas mecânicas são complexas, mesmo não tendo muito desafio mecânico. O jogo consegue ser bem customizável, com o limite de armas em cada classe, sua especialidade e cor da armadura. É algo simples no papel mas que já nas primeiras fases você percebe o quão importante é o jeito que cada um monta o seu personagem. Cada arma consegue ser útil e divertida da sua maneira mas como a maioria só consegue carregar duas, toda fase você precisa prosseguir sabendo qual é a melhor combinação para sobreviver os ataques. Se você joga sozinho como eu, as vezes a classe que domina não é a melhor opção e aí começa a experimentação de todas até achar o melhor jeito para zerar. O jogo recompensa isso sempre entregando armas mais raras e fortes para o jogador brincar e com o tempo você domina EDF. E toda essa questão de experimentação é ao mesmo tempo expandida e facilitada com o multiplayer do jogo, já que você pode montar todo tipo de esquadrão com seus amigos e ainda sim enfrentar um desafio digno (mesmo que no offline você libere a habilidade de montar um batalhão, não dá pra customizar muita coisa). É um ótimo jogo tanto para jogar sozinho quanto junto de um grupo de amigos.
EDF 4 conseguiu ser um dos melhores jogos que eu joguei ano passado, toda essa simplicidade e experimentação que o The Simple Series oferece ainda está no DNA da franquia, mas você percebe que o time tem tanto domínio do que eles estão fazendo que o jogo fica até complexo. Eles não tem pretensão nenhuma fora divertir o jogador e conseguem ser tão honestos quanto a isso que uma trama boba e sem dramatização consegue te deixar em estado de puro hype nas missões finais ou quando você junto de seu esquadrão começam a cantar todos juntos o hino da Earth Defense Force. Esse é o tipo de coisa que só esse lado alternativo do mercado que não se preocupa com orçamento alto, gráficos atuais e coisa do tipo pode trazer. E fico bem feliz de ter finalmente passado a apreciar a franquia em plena época do seu sexto jogo principal que parece ótimo. Eles são baratos e pegar algum EDF sabendo todo esse plano de fundo por trás deixa toda a experiência bem mais bacana. Agora, vamos dar uma olhada na outra franquia.
Live Action de Onechanbara.
Onechanbara é uma franquia que assim como outros jogos da Tamsoft e da Xseed games, te deixa curioso mais pelo estilo e gênero do que qualquer outra coisa. Apesar dos japoneses não serem estranhos a erotismo em todas as mídias que eles trabalham, a combinação entre as duas empresas é conhecida por ter feito Senran Kagura que combina musou com um anime ecchi e Onechanbara é a irmã visualmente mais apelativa da serie. Afinal, são vampiras samurais cowboy de biquíni matando zumbis. Os primeiros jogos eram só teste de mecânica e conceitos em um cenário mas que aos poucos foi ganhando forma e lore, além de sair do subgênero mais focado em esmagar botão e indo pro estilo que Devil May Cry apresentou ao mundo. E isso sempre foi algo que me instigou desde que eu conheci a série, principalmente ao descobrir que Onechanbara Z2: Chaos e os jogos mais recentes da franquia são todos fortemente inspirados em Bayonetta e jogos da Platinum no geral. Mas vamos mais a fundo na gameplay por enquanto.
Onechanbara Z2: Chaos (2014)
O diferencial de Onechanbara para outros hack and slash no geral, é que assim como em Bloodborne o sangue dos seus inimigos é uma mecânica. Mas ao invés de facilitar o jogo e recompensar um avanço mais agressivo, o sangue que vai no jogador em Onechanbara pode deixar as armas inúteis e só podendo resolver quando encontra uma estátua no cenário para limpar. É algo feito para incentivar o uso de todo arsenal e trocá-las no meio do combo para não deixar nenhuma inutilizável. E os jogos tem até uma versão não muito usual do Devil Trigger dos descendentes de Sparda, nesse caso dependendo do jeito que você atacar todo mundo, é ativado uma transformação automaticamente em que todos os status aumentam mas a vida desce até te matar e pelo menos que eu saiba, nos antigos o único jeito de não morrer é acabando a fase ou achando uma estátua. E em Z2 Chaos (o que iremos analisar), também vemos Onechanbara experimentando com o gênero, dessa vez permitindo o jogador usar 4 personagens ao mesmo tempo com as duas armas podendo ser alteradas o que da uma liberdade de customização e chances brincar bem impressionantes, considerando que até mesmo Devil May Cry 5 não conseguiu fazer isso funcionar e em Onechanbara isso é essencial.
A franquia funciona com base em luta entre irmãs e em Z2 Chaos vemos a junção das sucessoras de dois clãs rivais se unindo para enfrentar uma ameaça maior. E a dinâmica divertida em tela funciona bem em gameplay, com as irmãs tendo estilo parecidos mas com focos diferentes (as mais novas são mais mano a mano e com ataques conectados enquanto as mais velhas jogam igual um Dante da vida) e jogando até que muito bem considerando o quão difícil é fazer um Character Action. E seguindo o modelo da renomada desenvolvedora de hack and slashes, Platinum, aqui você é avaliado após cada batalha, tem um tempo extra caso esquive de jeito perfeito e golpes com a câmera mais dinâmica. O diferencial na campanha é que pelo menos no Z2 Chaos você escolhe a ordem dos níveis que vai jogar e um até faz homenagem ao primeiro jogo e a qualidade deles variam bastante apesar de manter o nível do combate no geral. Os meus maiores problemas com o jogo vêm mais em decisões pequenas que tiveram com base no próprio modelo da Platinum, mas funciona muito bem e o melhor jeito que eu tenho de convencer que a gameplay é realmente bem decente é mostrando esse trecho de gameplay.
Trecho de gameplay feito pelo TheCoolerBeeG.
Onechanbara me surpreende também por causa que não só conquistou uma base de nicho fãs do gênero que tiveram coragem de experimentar uma proposta tão bizarra assim como também conquistou fãs pela a sua história. Fora o Live Action, Onechanbara também teve um mangá e provavelmente não teve anime só porque Senran Kagura já ocupa esse espaço. E jogando unicamente o de PSP e Z2 Chaos, dá pra perceber que mesmo com a apresentação esquisita da história, o time tem um carinho de fazer algo divertido e recompensar quem gostou desse universo. O que eu gostei mesmo vendo a campanha é que a dinâmica das garotas é muito boa e apesar dos visuais eles nunca apelam para tentativas de sexualização fora elas se vestirem com pouca roupa. Bayonetta mesmo consegue ser bem mais pornográfico que Onechanbara e eu não sei se isso foi falta de orçamento ou os desenvolvedores não querendo piadas sexuais estilo as que tem Senran Kagura. É um jogo bem inocente na verdade falando de como a união faz a força de jeito clichê mas bem bacana. O jeito mais fácil de resumir o que foi jogar Onechanbara é: sabe As Panteras/Charlie's Angel? Imagina que a Platinum fez uma adaptação deles em jogo e temos a nossa franquia de vampiras samurai cowboy de biquíni. Não é um titulo tão apaixonante quando EDF, mas ambos se mantém muito bem e conseguem sair da esfera de simplicidade e apresentar uma certa complexidade.
Takesh's Challenge, um dos primeiros clássicos Kusoge do diretor Takeshi Kitano (1986)
Esses jogos surgiram de um ambiente recheado de jogos conhecidos pela a sua qualidade duvidosa e baixo orçamento. E mesmo alguns se divertindo com eles apenas pela seu charme e qualidade duvidosa, mas jogando o melhor que o The Simple Series tem a oferecer e contando como foi isso tudo eu espero convencer alguns dos leitores a experimentar mais jogos obscuros assim e tentar achar o seu próprio ouro invés de se perguntar como o remake de The Last of Us consegue ser tão ultra realista e como isso faz dele bom. Sério, abram o CD Romance e vão atrás dos jogos que parecem legais e vocês vão ver que vale a pena ir atrás de Kusoges ou só jogos de baixo orçamento como os da D3 Publisher.
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