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Eu, Yu Suzuki e Shenmue — Artigo

Tela de captura do jogo Shenmue
Reprodução: ©SEGA
 

Yu Suzuki é facilmente um dos nomes que definiram toda a história dos videogames, definindo a concepção do termo arcade com os seus jogos 2D e todo o mundo com a introdução do 3D. A AM2 (seu time de desenvolvimento) - junto ao Sonic - é basicamente o motivo da SEGA ter conseguido virar uma gigante e rivalizar Nintendo. A importância e influência de Suzuki ficada cada vez mais evidente quando mais se estuda a história desse meio artístico, mas, ao mesmo tempo, o fracasso se escancara.

Shenmue é a falha que quase fez a SEGA ir a falência no começo dos anos 2000, a falha que impediu uma animação de vingar e salvar um sonho de mais de 20 anos. Uma falha que, querendo ou não, virou um cachorro morto na sua última tentativa como jogo. No fim de tudo, Yu Suzuki pode ser definido por Shenmue, o seu maior projeto e maior fracasso ao mesmo tempo. Então, depois de anos acreditando que a franquia era apenas uma simulação de espera e empilhadeira, finalmente criei coragem pra jogar e me tornei um admirador das ideias de Yu Suzuki, mas junto disso também surgiu um questionamento.

Mesmo reconhecendo a gigante que a AM2 foi um dia, não é um estúdio que fez tantos jogos que eu realmente gosto, principalmente quando o assunto em pauta é o seu maior titulo: Virtua Fighter. Tenho vários problemas com o jeito de pensar jogos do Yu Suzuki, mas ao mesmo tempo adoro aqueles que mais o representam. Pensando nessas coisas, decidi rejogar e ver o documentário sobre a produção de Shenmue para trazer uma discussão sobre o game desing e tentar descobrir por que o jogo colou comigo. Então, bora lá.


CONHECENDO A AM2
Reprodução: ©SEGA

Algo que me chama a atenção é como a SEGA aguentou e conseguiu bater de frente com a Nintendo por tanto tempo, principalmente pelo baixíssimo reconhecimento pelo mundo. Na América Latina e Europa, a empresa foi popularizada pelos seus consoles e passou a ser reconhecida principalmente como produtora desses aparelhos, enquanto o que a marcou no Japão não foi o Sonic, mas sim a sua presença nos arcades. Foi a SEGA quem construiu a cultura dessas máquinas no país e até mesmo rivais como a Namco competiam com dificuldade. Apesar do arcade da SEGA em Shibuya ter fechado por conta do Covid-19, ainda existem diversos lugares com as máquinas em suporte, e isso tudo só foi possível por causa de Yu Suzuki, que ao entrar na SEGA e lançar seu primeiro jogo, ganhou a liberdade de desenvolver a própria placa de arcade para os seus jogos. Esse processo lhe deu a chance de criar a sua própria divisão na empresa, a AM2, que dominou esse mercado inteiro sozinha.


Com eles, o desenvolvimento 3D de jogos se acelerou de uma forma tremenda pelas máquinas do estúdio, pois foram pioneiros na implementação total dessa técnica e masterizaram tudo o que era possível na época, abrindo mais espaço para que outras divisões também tentassem. Até mesmo fora dos arcades eles foram importantes, ajudando no desenvolvimento dos consoles da SEGA e deixando eles mais potentes para aguentar ports de jogos exclusivos das máquinas. Se hoje em dia um PlayStation 5 renderiza cada fio espalhado pelo corpo do Kratos, a Sony deve a chama para a AM2.


As coisas ficam mais absurdas quando você exclui Yu Suzuki da equação e percebe os nomes das outras cabeças criativas presentes. Toshihiro Nagoshi? Criou Yakuza, salvou a SEGA da falência e trouxe toda a cultura atual da empresa. Seiichi Ishii? Fez Tekken, The Bouncer e criou um estúdio dentro da Square Enix que foi muito ativo na era do primeiro PlayStation. Takenobu Mitsuyoshi e Hiroshi Kawaguchi? Até hoje são chamados para compor em todo tipo de jogo, seja um Bayonetta da vida ou Sonic Mania.


É impossível tratar sobre a AM2 com foco em um só jogo, ainda mais considerando a abrangência dos projetos, pois até com a Hatsune Miku os caras estão envolvidos, eles são os únicos que podem falar como o Luva de Pedreiro sem perder moral alguma. Sendo assim, conhecer essa divisão é essencial para entender quem é Yu Suzuki como game designer e, enfim, discutir a fundo as suas ideias.


Conhecendo a lenda
Reprodução: Shenmue | ©SEGA

Um dos maiores nomes na indústria não gosta de jogar videogame, mas ama pensar neles. Yu Suzuki é a criatura mitológica que ganhou tanta moral nos anos 80 e 90 que conseguiu ter um orçamento grande o suficiente para rivalizar com a Rockstar Games de hoje. É aquele que ao invés de usar os arcades apenas como uma plataforma para lançar jogos, aproveitava toda a sua estrutura para incrementar a experiência final, ao ponto de ser difícil replicar os jogos fora desse habitat. É o cara que usava lógica de carros e motos para pensar no design dos seus jogos.


Mesmo Yu Suzuki não tendo tanta presença ao público quanto Todd Howard, Masahiro Sakurai e Neil Druckmann, ele é equivalente ao Shigeru Miyamoto para a SEGA graças aos seus projetos, considerando que ele sempre pensou em jogos complexos de produzir, mas com execução consideravelmente simples para o jogador. Tais fatores são muito bem documentados, por exemplo, existe um making-of inteiro sobre Shenmue em que ele e a equipe tentam explicar a ideia no desenvolvimento, fora as entrevistas onde Yu Suzuki trata sobre o raciocínio por trás dos seus clássicos e as estratégias usadas para que tudo funcionasse, justamente o que vamos nos aprofundar agora.


A filosofia de design
Reprodução: OutRun | ©SEGA

Durante o desenvolvimento de Hang On, com o objetivo de manter um fluxo constante de jogadores na máquinas de arcade, Suzuki tentou pensar de que modo iria conseguir fazer os jogadores aproveitarem ao máximo o tempo dado pela 100 yens.Out Run foi feito por causa das suas competições perdidas em jogos de corrida, algo que o fez decidir trazer um jogo de "corrida" sem frustrações, cuja única recompensa seria aproveitar o ato de dirigir e a habilidade necessária seria saber um ou outro truque de carros reais.


Esses projetos criaram uma discussão sobre a forma que ele pensa jogos, se prefere seguir por modelos arcades ou simuladores. Segundo ele mesmo, simuladores são jogos que buscam respostas reais a lógicas e desafios reais, mas que na grande maioria de seus trabalhos, isso não acontece. Esse aí é um ponto que eu acabo discordando, não acho que algo precisa ser 100% verossímil para ser taxado como um simulador, mas na real, o jeito mais fácil de resumir a filosofia de trabalho dele é chamar de "simulador de sensações".


Space Harrier, por exemplo, é um jogo sobre dinamismo e a sensação por trás disso. A mecânica toda dele é muito simples, você voa por todos os cantos da tela, atira em qualquer momento que quiser (até levando dano), esquiva ou destrói o que aparecer na sua frente e a cada segundo o jogo vai ficando mais rápido e dependente dos seus reflexos invés de memória muscular. O jogo foi inicialmente pensando como um shoot 'em up mais tradicional mas por limitações técnicas da época o avião de guerra foi substituído por um moleque em um planador de jaqueta e logo depois dada a oportunidade veio After Burner.


Virtua Fighter foi o primeiro jogo de luta 3D do mundo, sendo lançado logo no primeiro boom do gênero causado por Street Fighter 2, elevando a competição por trazer o elemento tridimensional que trouxe ainda mais estudios para a competição. O primeiro foi especial justamente pelo fator novidade, mas foi no segundo jogo que as coisas mudaram. Se o primeiro hoje em dia a coisa mais evidente é a sua falta de texturas e elementos visuais no geral que é "mascarado" pela modelação o segundo tentou ter um impacto visual forte nos personagens, cenários complexos, elementos interagiveis com os bonecos e também complexidade mecânica. Virtua Fighter 2 abriu todo o espaço para jogos de luta competitivos, com o elenco todo sendo bem difícil de jogar direito e com listas e listas de moveset na máquina.


Por algum motivo, no Japão Virtua Fighter 2 foi um fenômeno grande o suficiente que atraiu até quem não era interessado em video games com até assalariados indo nos arcades jogar algumas partidas durante o tempo de almoço e sendo referenciado as vezes por coisa tipo Ultraman com Ultraman Zero tendo o seu bordão diretamente tirado do jogo. Só que acaba por aí e justamente nisso acaba se criando os meus problemas com a série e fica evidente alguns problemas que Yu Suzuki teria a frente.


Suas ideias começaram a param de ser "simples", jogos como um todo estavam movendo cada vez mais para experimentar com tudo que fosse possível. O público como um todo estava largando isso e indo atrás do que consoles estavam oferecendo, era época de jogos como Shin Megami Tensei 2, Fire Emblem: Genealogy of the Holy War, Final Fantasy 6 e até Clock Tower. Os arcades estavam começando a ter uma esfriada e algo tão simples como Space Harrier não impressionava mais tanto sem ser pelos seus feitos técnicos. E o jeito de lidar com isso? Foi não lidar com isso.


Reprodução: Space Harrier | ©SEGA

Jogos de luta querendo ou não são complexos. Existe uma parte do público que diz não se importar com a história e outros aspectos não tão técnicos neles mas isso me soa muito como falácia e Virtua Fighter é o maior exemplo disso. Enquanto Virtua Fighter 2 lançava Tekken 2 vinha junto apostando justamente na sua identidade e deixar o jogo todo único. Justamente um que é lembrado até hoje por conta disso e que andou para que Tekken 3 pudesse correr e definir a série de vez como a representante dos jogos de luta. Tem até um excelente vídeo do ThorHighHeels justamente olhando mais a fundo toda a identidade que Tekken 2 tem. Se em um jogo de luta a única coisa que importa é o lado mecânico, o jeito que o personagem ataca, a aplicação de comando e as reações a eles, Virtua Fighter até hoje estaria firme e forme justamente por ser assim.


É uma exclusão total do fator que mesmo com conceitos simples por trás, esses jogos trazem uma representação de quem o personagem é e isso acaba refletindo no jogador, mesmo sem ele saber absolutamente nada sobre os personagens, eles representam algo sem ser uma ideia básica de lutador de arte marcial. Isso é algo que até autores de outras mídias se deram conta e decidiram trabalhar nas suas áreas, Oshikiri Renusuke com Hi Score Girl mistura romcom com coming of age e jogos de luta, o desenvolvimento do protagonista fã do gênero que é main Guile é sempre refletido pelos jogos que ele está interessado e nos personagens e a evolução deles também.


Destroy All Humankind. They can't be regenerated de Katsura Ise e Takuma Yokota faz basicamente a mesma coisa só que com Magic The Gathering e até um filme como Bad Lineaut de Abel Ferrera tenta isso só que usando esporte, mais especificamente beisebol. Não é querendo definir como arte deve ser e funcionar, mas o tropeço que a AM2 teve com Virtua Fighter foi justamente tirar essa parte, o público não tinha o que ligar no jogo fora a questão de ser divertido algumas rodadas ou tentar alcançar maestria.


E sabe algo curioso? Isso ficou tão evidente que todos os outros jogos de luta dela vieram com a ideia oposta de Virtua Fighter justamente por isso. Fighting Vipers, Sonic Fighters e Fighters Megamix apostam todos em carisma e tentar deixa-los únicos. Virtua Fighter 3 se deu mal por conta de adicionar terreno a complexidade de gameplay e isolar o jogador casual, 4 não tinha mais público dentro do PlayStation 2 e o 5 foi a mesma coisa. Foram jogos que se perderam por se isolar tanto dentro de um conceito X e mesmo quando tentaram dar uma soltada foram tentativas tão baratas (o OVA de Virtua Fighter e Virtua Fighter Kids) que não serviram para mudar a percepção. E de novo, isso não é um mal per se, jogos mais "mecânicos" tem seu espaço e merecem ser celebrados.


É só que Virtua Fighter desde o primeiro apostou sempre em choque. O choque de ser o primeiro 3D, o choque da evolução dele e quando a indústria toda alcança a AM2 e o que eles fazem deixa de ser tão surpreendente, acaba se perdendo o elemento de choque. Claro, eles ainda conseguiam uma hora ou outra se lançar por conta desse choque, mas deixou de ser algo especial. As coisas ficaram mais complexas e as ideias de Yu Suzuki e a AM2 no geral também. Um dos motivos da SEGA ter passado por problemas no começo dos anos 2000 foi justamente que ela se apegava a isso, se limitando a público infantil e ideias simples e o contra ataque de Yu Suzuki para as mudanças de gosto do público foi criar uma versão épica de Virtua Fighter, um RPG que ao todo daria 20 jogos e acabou resultando em Shenmue.


Yu Suzuki quando estava em uma viagem na China acabou criando na sua cabeça a ideia de trazer a história de Akira, o protagonista de Virtua Fighter de forma mais complexa em um épico que competiria com Final Fantasy (um detalhe engraçado que eu percebi escrevendo é que a SEGA tinha Sakura Taisen na época que quase impatou em vendas com Final Fantasy 7, a AM2 só queria meter a porrada em um Chocobo mesmo). Porém, quanto mais tempo se passava no desenvolvimento mais se percebia as limitações pelo que já foi estabelecido em Virtua Fighter e então foi decidido uma repaginação.

Reprodução: Virtua Fighter | ©SEGA

O projeto de Yu Suzuki foi escolhido para ser o que definiria de vez se a SEGA venceria a Sony na guerra de consoles, uma saga de 500 horas, ainda com múltiplos jogos (dessa vez 16) contando a história de Ryo Hazuki, um jovem de família de artistas marciais que vê seu pai sendo morto na sua frente por um líder de uma tríade chinesa chamado Lan Di que estava atrás de dois espelhos que o pai de Hazuki teria e decide então vinga-lo e descobrir mais sobre seu pai e os motivos de Lan Di.


Uma jornada que levaria Ryo a China, a desvendar coisas que aconteceram no período feudal, a possivelmente lidar com criaturas mitológicas e uma profecia de tempos antigos, tudo pensado de acordo com uma filosofia chinês que traria os jogos em conjunto. Misturando elementos de todos os tipos de jogos e técnicas disponíveis de um jeito que nem os criadores tinham certeza se poderia ser considerado um vídeo game ou um filme interativo. Se nos outros jogos de Yu Suzuki se o texto passase de 5 linhas era muito em Shenmue TODO npc do jogo iria possuir uma biografia, gostos, relações e uma rotina que aconteceria em tempo real, fora uma quantidade absurda de diálogos que aconteceriam para todas as situações do jogo.


Um mundo inteiro ia ser criado em 3D onde até diálogos dublados com motivos diferentes para não atender a porta aconteceria e para isso a SEGA investiu quase tudo que ela tinha. Apesar disso ser um estilo de jogo que estava sendo feito a algum tempo (Mizurna Falls, Majora's Mask, Moon Remix RPG) a escala que Yu Suzuki trouxe foi sem igual e até em elenco eles não pouparam, chamando nomes gigante da televisão e cinema japonês para dublar qualquer personagem disponível (o pai do Ryo por exemplo é dublado pelo Takeshi Hongo, o primeiro Kamen Rider que também foi o Segata Sanshiro, Hiroshi Fujioka). Shenmue foi concebido como um titã sem igual, um que nem seus criadores tinha certeza se entendiam e um que até hoje dá uma certa dificuldade para quem não conhece entender a sua proposta.


De maneira simples, Shenmue foi um "open bairro" de altíssimo orçamento que invés de tentar simular só um bairro tentou simular de fato um mundo usando qualquer coisa necessária para fazer o que queriam. Para vocês terem ideia do nível, no primeiro jogo eles retiraram todas as temperaturas do ano que ocorreram na cidade que o jogo recria, pegaram o período de dois meses que a história se passa e fizeram todos os dias seguirem exatamente da mesma maneira em que a temperatura seguiu na vida real. De jeito mais complexo? Shenmue foi o criador da ideia de FREE, uma ideia que até hoje você consegue ver certos exemplos dela sendo aplicada como no caso de Red Dead Redemption 2.


FREE: Full Reactive Eyes Entertainment. Toda vez que a AM2 tentava explicar Shenmue e usavam o termo RPG comparando com Final Fantasy e Dragon Quest para situar, Yu Suzuki negava com força (eu tenho quase certeza que ele realmente mataria um Chocobo se possível) e dizia que era um jogo FREE. Shenmue era um jogo que para seu criador é feito pensado pela interação através da observação e definido justamente por ela, principalmente por conta do seu ritmo e a ação não ser uma constante. Se o mundo de Shenmue é extremamente detalhado é justamente para favorecer o jeito que o jogo deve ser jogado e o que a campanha busca do jogador para avançar é justamente a sua observação.


Reprodução: Red Dead Redemption 2 | Rockstar Games

Indo para o exemplo que dei com Red Dead Redemption 2, a Rockstar provavelmente criou nele o mais próximo que teríamos de Shenmue se Shenmue tivesse dado financeiramente certo o suficiente para se manter até hoje, só que de maneira muito mais liberal ao que o FREE propõe. Você pode deixar tudo que você precisa no seu cavalo, ir manualmente nele e retirar o que precisa e assim entrar em combate, você pode entrar em primeira pessoa e abrir tudo o que precisa e ver as coisas mais bem detalhes que já viu, observar os npcs e os jeitos que ele interagem com o mundo mas nada disso é algo obrigatório. São características que fazem parte do jogo, não o que determina como o jogo funciona, pelo menos não em sua totalidade.


Existe todo o lado de interação por meio de observação do jogador e tem o material necessário para isso funcionar só que a Rockstar para ter mais público retira as "limitações" que o FREE tem de usar essas observações com uma mistura de lógicas reais trazidas por conta da observação. Quer um exemplo prático disso? Em certo momento no jogo Ryo vai para o porão secreto de seu pai, o problema é que não tem nenhum tipo de iluminação no lugar e para achar qualquer coisa precisa de alguma luz. Você pode ver que tem uma lâmpada no lugar e só precisa trocar ela; que tem velas espalhadas que podem iluminar o que você precisa caso compre fósforos; você pode comprar uma lanterna no mercado e trazer para o lugar e por aí vai, a única coisa que você precisa é observar e aplicar a lógica de como seguiria na vida real, eis a importância dos detalhes para que isso realmente seja possível (é algo meio que semelhante a imersive sim inclusive). 


Yu Suzuki era tão confiante no FREE que ele separou o jogo em três modos: FREE Quest, onde o jogador está solto para explorar e cumprir o que precisa da maneira que quiser; QTE onde os reflexos são testados em momentos cinematográficos interativos onde alguns permitem que erros ou escolhas do jogador criem sequências totalmente novas e o combate para finalizar que em resumo, é uma versão simplificada de Virtua Fighter onde Ryo tem uma lista de movimentos de vários personagens da série e luta contra várias pessoas ao mesmo tempo, com o treino sendo liberado para que quem não domine os comandos de Virtua Fighter possa praticar. E aí entra o que para mim é o ponto principal de Shenmue, mas primeiro preciso contextualizar mais como a gameplay funciona, considerem que metade do que vocês viram no YouTube vem de gente que se recusa a jogar Shenmue do jeito proposto pelos criadores.


Shenmue é um jogo sobre monotonia (já disponível na Steam inclusive), mais especificamente a do dia a dia e a administração do tempo neste cenário tudo elaborado por meio da filosofia do Wu Wei, a arte de não fazer é o que define isso. Nele, a ideia principal é fluir como o mar, basicamente agir com calma, não forçando para ter resultados e seguir de jeito natural para alcançar o resultado necessário. Se o jogador quiser alcançar algo em Shenmue, ele precisa ser paciente e agir de acordo com as regras desse mundo. Todos os npcs têm a sua rotina com horários específicos e o que eles tem de conhecimento além do que geralmente iriam conversar com Ryo sobre, para avançar a campanha é uma questão de conhecer de fato isso tudo e seguir fluindo, só que ao invés de ficar parado esperando para algo acontecer você tem coisas a mais para fazer.


Seja no arcade para jogar alguns clássicos da AM2, na máquina de cápsulas gacha, conhecendo mais da cidade, se topando com secundárias ou treinando. A última coisa que o jogo quer é que o jogador fique totalmente parado esperando algo acontecer. E o FREE encapsula tudo isso, só que a cereja do bolo para mim é o treino por conta da sua força temática e reflexo enorme no personagem de Ryo, que começa o jogo como um adolescente impaciente e fraco e termina do mesmo jeito mas reflexivo, treinando para entender as coisas que seu pai e outras pessoas próximas queriam passar (até o anime lida bem com isso fazendo um dos momentos mais marcantes ser um senhor ensinar Ryo um golpe como forma de dar suporte no meio do luto dele). E apesar de eu saber que para alguns que estão lendo isso deve ter soado como uma maravilha, é bem óbvio o por que disso ter dado tão errado.


Um jogo inspirado em uma filosofia chinesa com mega conceito de desing com ritmo lento tem um público alvo pequeno, até a questão de ficar observando a beleza gráfica é um público muito especifico. Os anos 2000 foram a última vez que os vídeos games tiveram esse fator de choque de revelação gráfica e mesmo antes dele as coisas já tinham sido normalizadas o suficiente para sabermos o que estava por vir. A competição também sabia e se aproximava rápido então não seria isso que faria o jogo vender o necessário. É dito para que Shenmue tivesse sido pago e recebido lucro seria necessário que cada pessoa que comprasse o jogo pegasse mais dois Dreamcast e outras duas cópias de Shenmue. E isso fica bem fácil de entender quando se lembra que Shenmue estava sendo feito inicialmente para Sega Saturn com as imagens de desenvolvimento mostrando que eles já estavam começando a desenvolver Shenmue 2.


Foi gasto o equivalente de QUATRO AAA em apenas dois jogos que gastaram ainda mais com uma equipe especializada até para escolher quem dublaria o jogo (o que deixa engraçado considerar que a dublagem americana foi escolhida por Yu Suzuki só vendo qual dublador americano era mais parecido com os personagens e a localização do jogo é algo). Para piorar as coisas, o PlayStation 2 ainda é um dos consoles mais vendidos no mundo inteiro e abusou total do começo da era do DVD e ser bem fraco em poder em relação ao resto da concorrência e bem barato. Shenmue foi um projeto que deu tão errado em retorno financeiro que para impedir a falência o presidente da SEGA pagou o que conseguia e transformou a empresa em apenas um estúdio de jogos e que também publicava alguns. E a partir disso, nenhum outro projeto de Yu Suzuki teria dado certo. Shenmue Online que seria Final Fantasy 14 em 2005? Cancelado. As máquinas de arcade? Nenhum retorno grande. Virtua Fighter? Parou de ter envolvimento com os jogos. Shenmue 3? Apesar de ser um dos maiores projetos de Kick starter foi um jogo que deu tão mal que tirou qualquer moral da série para o grande público. O anime de Shenmue? Cancelado. E até o jogo NFT anunciado recentemente por Yu Suzuki não parece que irá dar certo, foi realmente uma queda da glória enorme, mas mesmo assim Shenmue é muito maneiro.


Discutindo o que Shenmue faz de bom
Reprodução: Shenmue | ©SEGA

Joguei Shenmue depois de muito tempo tendo contato com a série apenas através de vídeos, conhecendo-a apenas como um recorte de um passado glorioso. Um jogo feito para gastar seu tempo, apreciar os seus detalhes e que teve problemas envolvendo a Steam e a Epic Games. Jogando, encontrei um "open bairro" com uma filosofia de design que aplica algumas das formas mais criativas de levantar questionamentos em videogame. O primeiro Shenmue é sobre Ryo se isolando, abandonand seus amigos, sua família e seguindo firme para tentar entender tudo que aconteceu. Mas ele deveria fazer isso? A sua vida estava feita, ele tem uma "namorada", futuro profissional brilhante, já ganhou espaço como artista marcial, tem um dojo inteiro para ele, amigos próximos... ele não precisaria, em nenhum algum, abandonar seu mundo e perseguir a máfia chinesa, mas mesmo assim essa é a sua meta.


O jogo inteiro usa treinamento como momentos de reflexão e a interação com a cidade como forma de mostrar não só algo real, mas o que Ryo está perdendo. Shenmue 2 é sobre calma, Ryo está na China, sozinho e determinado a acabar com tudo o mais rápido possível. só que ele não está pronto. Cego pela raiva, ele não enxerga o quão pequeno é perante ao mundo que o cerca, e assim, o jogo inteiro é pensado para colocar sessões em que o que seja exigido do jogador é calma e paz. Shenmue 3 é… Shenmue 3? Desculpa, mas não tem nada que consiga tirar dele fora a sua própria existência. 


A filosofia dos jogos do Yu Suzuki é presente em Shenmue de um jeito esquisito, você tem a ideia de simular a vida real e é entregue a sensações que são determinadas por cada jogo, mas ao mesmo tempo ele vai além, não é uma questão de apenas trazer o básico e executá-lo bem. Shenmue tem algo fora da sua natureza arcade e isso pode serve muito bem como atrativo, não é algo que colou comigo. Um problema que tenho com os jogos mais complexos dele é que tudo me soa pensado muito com a ideia mais básica possível e são poucos os casos que isso não rola.


O elenco de Virtua Fighter é a ideia mais básica que você teria de um elenco de jogo de luta e mesmo com os esforços nada faz eles se destacarem, o único com algo que deixa ele mais especial é o Kage-maru que é um ninja com uma mãe ciborgue. Shenmue sofre disso mas de jeito mais complicado, as ideias que tiveram para o elenco da série foi um pirata, uma garota conectada com misticismo, um lorde do mal supremo e uma mestra com um passado que eu tenho certeza que influenciou pelo menos um pouco The Last of Us 2.


A sensação que o elenco e o mundo de Shenmue me dá é que você está lidando com personagens muito básicos em um conflito em que isso acaba atrapalhando as coisas. É difícil de explicar, me dá a sensação de um filme do Spielberg só que sem as qualidades do diretor para fazer aquilo funcionar. O personagem mais único que conseguiram pensar foi um pirata chinês que ajuda Ryo e isso me afasta em certo nível. Não é tão funcional assim me fazer questionar se deveria manter a vida perfeita invés de ir no mundo atrás de vingança se o que tem para me deixar preso é os personagens mais básicos e sem graça possível. 


Shenmue funciona quando trabalha com temática de jeito único e os meus dois personagens favoritos da série são justamente os que existem a função disso: Guizhang Chen e Ryo Hazuki e ambos são paralelos entre si com um diferencial, o pai de Chen está vivo. Chen é um rival de Ryo mas um que treina ele para ajudar em sua jornada. Os dois são jovens que não tem a noção real do mundo e é em Chen que é refletido se Ryo está certo ou não em fazer isso. Todo confronto entre os dois serve para preparar o jogador e colocar para a frente esse questionamento e os dois por mais da premissa simples neles funcionam muito bem para o que é proposto, eles são personagens muito bons.


O clímax do combate do jogo é onde ambos lutam junto contra um exército de 75 homens e a última coisa que você faz antes de zerar o jogo é treinar com Chen. Shenmue as vezes consegue algo que nenhum outro jogo de Yu Suzuki consegue, ele apresenta algo mais difícil e te desafiar nisso. Mesmo quando é revelado que na verdade é uma profecia e o destino de Ryo está pré determinado para isso acontecer o jogo consegue deixar impactante o que acontece. E isso é algo que acontece bastante entre os dois primeiros jogos, principalmente com Shenmue 2. Se Yu Suzuki é um mecânico interessado em construir sensações sem pensar muito fora disso com Shenmue ele provou que essa visão tão fortemente ligada com técnica quando bem usada cria algo impressionante. 


Posso não ser o maior fã do Yu Suzuki e o o jeito de ver jogos como algo muito técnico ou da AM2 mesmo, mas consigo apreciar o talento e a força do estúdio. Yakuza mesmo sendo uma proposta bem diferente pode ter me agradado muito mais (e feito algum dos momentos mais especiais que eu tive com arte) mas não é um substituto de Shenmue como alguns falam. A série pode me incomodar com seus lados simples demais para o que pede para acontecer e ter me conquistado pelos seus momentos que brilha mas provavelmente é algo que não vai atrapalhar a experiência do resto. É um projeto gigante de uma aposta ousada e que pelo visto nunca vai se concluir mas é algo que merece pelo menos ser respeitado mesmo que seja vendo o anime ou admirando a distância. 

Este texto foi editado e revisado por Maya Souza (@ShinMayanese).



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