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Foto do escritorGabriel Morais Oliveira

Dungeons of Hinterberg me lembrou que eu estou no caminho certo — Crítica

Sei que vou morrer, não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba. (Na Cadência do Samba, música de Ataulfo Alves)

Há dois anos, publiquei um texto sobre The Artful Escape, o jogo que foi o estopim da maior decisão que já tomei na minha vida. E por muito tempo pensei em reescrever minha crítica, já com esboço pronto e tudo, como se fosse necessário cavar de volta minhas primeiras pegadas que ficaram no começo dessa orla do Jornalismo de Jogos.


Mas, felizmente, fui interrompido. Não de contar a minha história, mas de não precisar usar The Artful Escape para contá-la (sei que muita gente abomina esse jogo, questão de consciência de classe). Até porque talvez essa seja a história que eu mais goste de contar, mais até do que o dia em que conheci o Josh Radnor (Ted Mosby) em um bar de trash metal no centro de Limeira.


E, sinceramente, não imaginei que, nesta altura da trajetória, fosse me deparar com outra obra que me fizesse pensar no quão maluco, desesperado e necessitado de propósito eu era há três anos.


Na crítica a seguir, farei um pequeno resumo sobre Dungeons of Hinterberg, passeando pelas intenções da protagonista Luisa, fazendo um paralelo com a minha trajetória na transição de carreira e trazendo alguns conceitos filosóficos sobre trabalho. Espero que você tenha uma ótima leitura!


Uma vida difícil gera escolhas mais difíceis ainda

(Sons de pigarro) Pois bem, meu nome é Gabriel Morais Silva de Oliveira, conhecido por alguns como Gabriel Hyliano. Tenho 27 anos (verificar a data da publicação) e sou um ex-advogado que, em um processo de burnout, pediu demissão de um dos maiores escritórios da minha cidade depois de três anos na carreira jurídica. E é a partir desse ponto que minha história se confunde muito com a da "doutora" protagonista de Dungeons of Hinterberg.


Começamos o jogo com a carrancuda, melancólica e temperamental Luisa — que bem poderia se chamar Gabriel, e ter uma barba relativamente grisalha antes dos 30 anos. Ela é uma estagiária de Direito que decidiu tirar férias depois de um processo de sobrecarga psicológica.


Mas Luisa, que não é boba nem nada, decide ir para uma fictícia e estonteante Hinterberg, cidade austríaca turisticamente conhecida por abrir 25 masmorras repletas de magia. Dentro dessa cidade, existe uma movimentação social que gira em torno de receber turistas, treiná-los e colocá-los para explorar essas masmorras, derrotando monstros e colhendo recompensas. Tudo em nome do entretenimento. Irado demais.


Inicialmente, nossa personagem aparenta ser alguém que estava apenas de saco cheio do trabalho. Até aí, quem nunca se sentiu pressionado por cargas altas de serviço e desejou ser um herdeiro? Ócios do Capitalismo. Mas não é esse tipo de desgaste que afeta Luísa, e sim o fato de que ela estava engajada em uma carreira que não fazia nenhum sentido para ela.


Luisa então chega em Hinterberg e, logo de cara, faz amizade com Alex. O diálogo que segue nos dá a perspectiva de que Luisa não está no melhor momento de sua vida, e que aquelas férias talvez sejam uma tentativa de se encontrar em um lugar que promete entregar aventuras, magia e a quebra da monotonia.


Começando os paralelos, comigo não foi muito diferente. Conforme fui amadurecendo, minha relação com o trabalho foi tomada por um desejo de me afastar o máximo possível do maquinário social. Meu primeiro estágio, aos 17 anos, em Direito Eleitoral, se resumia a manutenção de banco de dados de uma vereadora da minha cidade, selando cartas e preparando a próxima campanha política. Nada de conteúdo jurídico. Eu não esperava muita coisa para o primeiro emprego, mas aquilo era insuportável.

A partir daí, os próximos estágios, atendimento ao cliente e três escritórios somaram sete anos moldados por corrupção, burocracia, desgastes, assédios e, finalmente, o burnout, aos 24 anos de idade.


Um burnout com 24 anos de idade... Eu tinha pesadelos com o trabalho, dormia mal, comia pouco, passava duas horas por dia em transporte público no horário de pico, não tinha ânimo para me exercitar, sofria com enxaquecas causadas pelo bruxismo que vinha com o estresse, e chorava constantemente quando pensava que aquela decisão ia me acompanhar pelo resto da minha vida.


Eu não conseguia parar por mais de um ano em nenhum escritório de advocacia e entendo perfeitamente a Luisa em querer correr (literalmente) para as colinas.


Os primeiros passos

Voltando ao início da jornada de Luísa em Hinterberg, somos apresentados ao Klaus, que nos explica os primeiros passos de combate e nos apresenta à nossa primeira masmorra, com inimigos e quebra-cabeças.


E não é que somos bons nisso? Um sentimento de identificação muito forte começa a surgir entre Luisa e a profissão de caçadora de masmorras. A magia parece favorecê-la, tudo flui de forma natural, e a masmorra logo se transforma em uma metalinguagem sobre estar onde queremos estar, fazendo o que nos faz bem, e nada mais importa além disso.


Em termos de estrutura, os dias em Hinterberg são divididos entre Madrugada, Manhã, Tarde e Noite, e para cada uma dessas divisões existem tarefas específicas que fazem com que o tempo passe.


Por exemplo, a madrugada é feita para dormir ou passar tempo lendo ou assistindo televisão, o que compromete nossa saúde, mas aumenta outros atributos; a parte da manhã é feita para explorarmos as masmorras; durante a tarde podemos comprar equipamentos, armas e dar andamento em algumas missões secundárias; e à noite passamos o tempo com algumas das diversas companhias disponíveis no jogo.


Cada masmorra nos apresenta diversos quebra-cabeças que são feitos com muito carinho, lembrando a franquia 3D de The Legend of Zelda, inclusive nos chefes únicos de cada bioma. E falando em bioma, cada um deles nos permite utilizar dois poderes únicos, tanto para combate quanto para resolução de quebra-cabeças.


Já a estrutura de relacionamentos é extremamente parecida com a série de jogos Persona. Hinterberg é, além de tudo, um hub de pessoas que estão em busca de viver um momento mágico, e existem inúmeras opções de pessoas para conhecermos e formarmos amizades.


Conforme passamos tempo com as companions, uma barra de relacionamento é fortalecida e, com ela, vêm diversas melhorias para nossa gameplay, como espaços de amuleto, armas novas, mais vigor, vida do personagem, e etc.


Aqui, na minha opinião, é um dos momentos em que Dungeons of Hinterberg mais brilha. Não pela mecânica, mas pelos diversos habitantes que podemos conhecer, com muitas histórias emocionantes, que ressaltam que, tanto quanto ter uma jornada que nos agrada, é importante ter pessoas para compartilhar os bons (e os maus) momentos.


Mas quem dera se a transição de carreira e o processo de autodescobrimento fosse assim tão simples... Também existem, em Hinterberg, indícios de corrupção, de cargos privilegiados, de áreas inacessíveis pela falta de experiência, e Dungeons of Hinterberg não deixa nem um pouco de lado os questionamentos, as dúvidas e os momentos em que Luísa pensa em desistir.


Ainda mais quando olhamos para trás e vemos que existia um caminho traçado, que de certa forma traz o conforto da inércia. Afinal, são cinco anos de faculdade e mais meses, ou até anos, de estudo para poder passar no exame da Ordem. Como jogar tudo isso no lixo em busca de um sonho sem pensar, durante o processo, que é uma decisão infantil ou egoísta?


Mas o sonho, a vontade de fazer algo que traz sentido para nossa vida é muito maior, e é sobre isso que falarei a seguir.


A identificação e o papel social do trabalho

Jean-Paul Sartre, em sua obra "O Existencialismo é um Humanismo", elenca diversos princípios que envolvem a dialética existencial.


Em linhas bem curtas, Sartre disserta na obra sobre o quanto o ser humano depende de crenças e normas para conduzir a vida e enfrentar as angústias do desamparo. Por conta do conflito entre a consciência e o conhecimento sobre si e sobre os outros, Sartre acredita que o ser humano se encontra em uma posição de infinitas possibilidades de significar o mundo e manifestar-se nele.


Essa consciência reflexiva sobre o futuro é responsável por nos fazer definir nossos projetos e delimitar o fim que queremos atingir. E eu acredito fielmente — pelo menos isso é o que move a minha vida — que um desses fins, uma dessas formas de significar o mundo e se manifestar nele, se dá através do labor, do trabalho, daquilo que construímos e entregamos para o mundo.


Em contrapartida, no projeto capitalista, a hegemonia do lucro é colocada acima do valor do trabalho, e isso limita e cerceia a liberdade pregada por Sartre ao destituir o destino da responsabilidade das escolhas que fazemos. Somos atingidos a todo momento pela precarização de profissões, por posições privilegiadas, pelo corporativismo ganancioso, pela industrialização da cultura e muitos outros limitadores da nossa liberdade.


Além disso, a cultura do ter, que se sobrepõe ao que somos, nos vende recorrentemente a ideia massacrante de que devemos valorizar primariamente o que temos em termos de produtos e status, corroborando a ideia de um homem pré-concebido. Somos ordenados a todo momento sobre o que devemos atingir para sermos realmente validados socialmente.


Mas sabemos que as coisas, em si, não possuem onipotência para totalizar o homem, dado o vazio infinito de nunca poder ter algo que o satisfaça plenamente (isso não significa que eu seja tolo o suficiente para não gostar de dinheiro; falarei sobre isso mais para frente).

A questão aqui é que, ainda citando Sartre, não existe uma lei, uma regra ou uma fórmula que determine o que devemos ou não fazer com as nossas vidas para alcançarmos a plenitude.


Mesmo ganhando um absurdo para alguém que acabou de sair da faculdade, eu não me sentia bem, não me sentia relevante, não encontrava prazer em levantar da cama e exercer um labor que não era uma extensão de mim. Nada daquilo fazia sentido na minha vida, assim como não fazia sentido para Luisa. Eu nunca me identifiquei tanto com o texto de um jogo como o diálogo a seguir, quando Alex pergunta para Luisa por que ela saiu de Viena.


"Na minha vida inteira, sempre esteve claro qual era a coisa certa a se fazer ou quais passos levariam até ela. Se sempre há um passo que não está fora de alcance, você nem pensa muito se está ou não no caminho certo. Não tem como se arriscar a pegar um caminho desconhecido se está constantemente cansada de seguir em frente.
Ah, sabe.. bastou uma semana trabalhando em um escritório de advocacia para entender que eu odiava ser advogada. Mas, ainda mais do que isso, percebi que odeio ser esse tipo de pessoa... O tipo que tem a vida planejada e está sempre pensando que vai levar alguns anos duros para poder aproveitar a vida. Sinto que adiei todas as liberdades que outras pessoas com seus 20 anos têm para avançar na vida... E, agora, meus amigos estão começando a se estabelecerem, enquanto eu... não cheguei a lugar nenhum.
Sinto que parei de ter experiências assim. Parece que tudo o que faço, incluindo as minhas conexões, fazem parte da mesma rotina."

Tudo que eu queria naquele momento de maior angústia da minha vida era poder escolher, mesmo que naquele momento eu não soubesse o que fazer. Eu queria fazer algo que me desse retorno financeiro? Com certeza. Mas, antes de tudo, eu queria algo que me fizesse feliz, que me fizesse sentir completo. Algo relevante, que impactasse as pessoas, que as fizesse se sentir bem, influenciadas, alegres, nem que fosse por um pequeno momento.


Em fevereiro de 2022, enquanto tentava esconder as lágrimas no ônibus voltando para casa, comecei a ouvir o episódio Indie Attack #02 do UP, em que Marcia Effect e Cardoso falavam sobre The Artful Escape. Eu fui imediatamente cativado pela ideia de um músico que estava predestinado a ser o sucessor do seu tio, mas que tinha o sonho de descobrir quem ele era de verdade. Depois de me emocionar com a temática e com a trilha sonora, dei uma chance ao jogo, e ele se tornou a obra mais importante da minha vida (apesar de não ser o meu jogo favorito).


A partir daquele momento, estava disposto a arriscar tudo. Me matriculei em uma pós-graduação em Jornalismo Digital, depois na faculdade de Jornalismo, saí do escritório, e muita coisa aconteceu, incluindo o término de um relacionamento de cinco anos, ter que voltar para a casa dos meus pais e recomeçar a minha vida como se tivesse voltado oito anos no tempo. A diferença é que eu não voltei oito anos no tempo. A minha masmorra, a partir daquele momento, era o Jornalismo de Jogos.

A minha masmorra é o jornagames

Luisa poderia muito bem ter recebido um panfleto, visto um story patrocinado no Instagram sobre Hinterberg, ou ouvido um podcast falando sobre como uma masmorra específica iria emocioná-la e fazer com que ela nunca mais saísse daquela cidade, o que basicamente aconteceu comigo.


A cada masmorra, a cada amizade que vamos fazendo pelo caminho em Dungeons of Hinterberg, vemos uma Luísa feliz, se encontrando um passo atrás do outro, mas sempre com o fantasma do "eu preciso ter uma vida normal, eu preciso ser advogada" perseguindo seus pensamentos. Muitos momentos foram quase como uma tortura.


Tudo o que eu mais queria quando isso acontecia era atravessar a tela e abraçar Luisa, dizendo para ela acreditar que tudo poderia dar certo. Mas, na verdade, foi Luisa quem me abraçou. O meu maior medo desde o começo desse jogo era que o enredo a levasse para um caminho de "você teve um delírio temporário, tudo o que precisava era de um respiro; agora volte das férias, seu lugar não é aqui."


Claramente, isso é um reflexo dos meus próprios medos. O medo de alguém um dia olhar para mim e dizer: "Seu lugar não é aqui. Volte de onde você veio. O Jornalismo não é para você."


Eu jamais imaginei que eu fosse me apegar tanto a uma personagem depois de Francis Vendetti, mas uma coisa extremamente importante de ressaltar é que Luisa não estava sozinha. Quando eu disse que Hinterberg brilhava pelas companhias, é porque temos uma rede de apoio que está constantemente lembrando a nossa personagem de que ela tem todo o direito de correr atrás dos sonhos dela. Mais do que isso, eu me emocionei muito ao ver o grupo que ia se formando ao redor da protagonista e a força de vontade que ela demonstrou em seguir seus sonhos até o último momento. Klaus, Marina, Renaud, Alex, Barão, Hannah — todos estiveram comigo do início até o final da jornada em Dungeons of Hinterberg.


Cada um com seus dilemas, suas batalhas, suas dificuldades, mas se apoiando, tentando evoluir e tornar o ecossistema, até então corrompido e cheio de máculas, em um lugar mais tolerável para se viver, onde cada um tivesse o direito de se expressar. Nem mesmo uma prefeita gananciosa, ou o possível fim da jornada com a conclusão das 25 masmorras, foram capazes de parar Luisa, mas ela jamais teria conseguido alcançar seus sonhos sozinha, não sem a população de Hinterberg.


A minha masmorra é o jornagames, mas a minha Hinterberg com certeza são todas as pessoas que me apoiaram e que continuam me apoiando até aqui. É preciso reconhecer o tamanho do privilégio que eu tenho de ter o apoio dos meus pais e dos meus amigos, mesmo que eu não tenha tido nenhuma segurança financeira nessa empreitada.


Meu compromisso é que, enquanto eu não for massacrado pelas mazelas do neoliberalismo econômico, enquanto eu não tiver que relegar minha força de trabalho como mero produto da minha subsistência, eu vou fazer de tudo para me autoafirmar e entregar ao mundo quem eu realmente sou. Assim como Luisa fez ao bater no peito e determinar que seria uma caçadora de masmorras.


E como é bom poder falar de jogos! Como é bom poder jogar Dungeons of Hinterberg e encontrar na Luisa alguém que tem tanto a ver comigo. Como é bom poder destrinchar e criar essa ponte entre o que me comove e o que você, leitor, tem a possibilidade de encontrar em uma obra.


É para isso que eu vivo, para que este texto chegue até você e, quem sabe, entregue uma minúscula fagulha de sentido para a vida, além do mero "consumismo" mecânico dos jogos que nos cercam.


Parafraseando o meu grande amigo e professor Leo Ferreira, quero encerrar este texto com um trecho da música "Levanta e Anda", do nosso poeta contemporâneo Emicida:

Você não percebeu que você é o único representante do seu sonho na face da Terra? Se isso não fizer você correr, chapa. Eu não sei o que vai.


Abraços de um ex-advogado e jornalista sonhador, e até a próxima!





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