Liberdade
“Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome.”– Carlos Marighella
Como Alguém Pode Amar Tanto a Liberdade?
Carlos Marighella é um dos meus heróis. Baiano, filho de uma mulher preta com um italiano branco. Como eu, um baiano pardo, misturado, sujo, mulato. Também um baiano poeta, que acredita, sobretudo, na liberdade do povo brasileiro.
Não a liberdade que defende aqueles que sugerem que um bloqueio de aplicativo é censura,mas a liberdade indomável, aquela que, uma vez descoberta, revela ser impossível de alcançar por vias individuais.
Uma vez que percebemos essa liberdade e a sua possível existência, somos conquistados por uma sede indomável, por essa vontade incontestável de mudança.
E lutamos.
A Luta de Carlos Marighella
Carlos Marighella lutou com armas. A visão mais caricatural dele é a de um guerrilheiro, que matou e morreu pela revolução. Essa visão também existe, e a respeito infinitamente. No entanto, havia uma outra vertente de sua luta, entre suas muitas faces, que surgiu desde cedo. Uma luta não apenas acadêmica, mas também artística. Carlos Marighella lutou desde cedo contra a opressão burguesa, destilada pela censura.
“Basta, senhor tenente! De teu bucho jorre através das tripas um repuxo de Judas e sandeus! Há duas noites… eu soluço um grito… Escuta-o, conclamando do infinito: ‘À morte os crimes teus!’"– Carlos Marighella, herói revolucionário baiano, para Juracy Magalhães, interventor na Bahia (a mando da ditadura militar) em 1932.
Essa vontade mortal pela liberdade antifascista é clara em sua arte. O que acho mais belo é que essa arte revolucionária, esse presságio, esse afã pela liberdade, não permite que, antes da censura material imposta pelo regime militar, exista uma censura de si mesmo por medo da morte. Marighella tinha um fado heróico (e até voluptuoso) com a liberdade que nem a morte poderia evitar, e foi essa mesma vontade arrebatada pela liberdade que encontrei em Detention.
“E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome..."– Liberdade, Carlos Marighella
Sobre Censura e Detention
Como podemos deixar que a censura se torne apenas uma buzzword? Apenas uma palavra de gancho em thumbnails ou uma forma de alimentar o algoritmo com acusações? A censura que conhecemos é a censura burguesa, que atua de maneira silenciosa e opressora, mas se intensifica e torna-se cada vez mais explícita à medida que nós, trabalhadores, pegamos em armas. Armas e livros.
A censura burguesa, em crise, é sanguinária, e assim foi em Taiwan. Para evitar qualquer organização popular contra o sistema marcial oriundo da guerra na China continental, o governo do Kuomintang, partido nacionalista chinês opositor ao partido comunista, sancionou medidas contra qualquer conteúdo e organização realmente ou potencialmente revolucionária comunista. Não apenas quem decidisse se expressar sofreria na pele as punições, mas também sua família, amigos e até colegas de trabalho ou escola.
Escolas, que, inclusive, seriam uma grande fonte de censura fascista. O mero debate era motivo não apenas para ser punido, mas para ser o algoz de todos ao seu redor. Ser uma pessoa política era uma sentença de morte. E como estudar sem ser político?
Nas escolas, professores e alunos precisavam se tornar completamente apolíticos, a ponto de que, a simples realidade sobre a política poder ser moldada pelo poder popular, fosse apagada do imaginário dos jovens estudantes. Mesmo que crescessem sabendo da possibilidade de se expressarem livremente, não teriam meios para fazê-lo e seriam coagidos a reprimir qualquer conduta antigoverno, não apenas pelas forças armadas, mas pelas pessoas ao seu redor. Não apenas por posicionamento político, mas por medo.
Essa é a censura burguesa: não é apenas ser punido por fazer algo, mas nem sequer saber ou acreditar na possibilidade de fazê-lo. Ela ataca nossos sonhos silenciosamente, extinguindo nossas possibilidades.
Sonhos Nutridos nas Escolas
É na escola que os sonhos são nutridos. Os dados do destino daquelas crianças ainda não foram lançados, e sua imaginação, ainda fértil e livre dos tentáculos do capital, consegue imaginar uma realidade diferente. E por sonharem, elas se tornam perigosas, pois, para sonhar, precisam de uma arma incensurável:
“Um negro a menos contarão com satisfação
Porque é a nossa destruição que eles querem
Física e mentalmente, o mais que puderem.”– Negro Limitado, Racionais MC's
Em Detention, acompanhamos crianças que sonham, em vida, em um mundo morto, até que, em meio a uma aula de história, um homem fardado pergunta à nossa professora: "Você já viu esta lista?", entendemos que algo está errado.
A seguir, acordamos no meio de uma tempestade. Está escuro e parece que estamos em um episódio estranho de uma turvação climática fora de época. A partir daí, navegamos por uma história de terror físico e metafísico, enquanto lidamos com um drama envolvendo um grupo de estudantes que estavam sendo levados a sonhar em viver livres, por meio de "certos livros" entregues de forma clandestina pela professora.
Essa lista de livros seria também o motivo pelo qual essa não é uma história de libertação, mas de terror, e o jogo se torna ainda mais impactante quando entendemos o seu algoz.
As Implicações da Censura: Sociais, Culturais e Pessoais
Afinal, as implicações de uma censura vão além do social; são culturais e pessoais. Detention explora esse tema com uma direção de arte culturalmente expressiva, como as referências japonesas em uma escola taiwanesa que viveu 50 anos sob o domínio imperialista nipônico. Mas o jogo também aborda as questões pessoais da protagonista, cuja narrativa se desdobra pela gameplay (como a forma de resolver puzzles e lidar com inimigos) e pelo ambiente, que é completamente pessoal.
Além de dominar o design e a arte, Detention traz uma luta íntima e profunda sobre as vítimas de um regime militar. Esse sentimento é semelhante ao que tive ao assistir Revolução Sem Sangue, do português Rui Pedro Sousa, que, contrariando o título, evidencia as vítimas da Revolução dos Cravos devido à opressão do fascismo em Portugal durante o regime pós-Salazar.
Vemos essas revoluções como marcos mundiais; o período da luta pelo fim do regime militar é amplamente tratado como um impacto social. No entanto, é raro vermos um olhar pessoal e íntimo, até granular, sobre essa opressão.
Um Recorte Pessoal de Uma Vivência Histórica
Detention, assim como o filme mencionado, traz um recorte pessoal de uma vivência histórica e luta para que aquelas vidas perdidas sejam eternizadas. A lei marcial em Taiwan terminou em 1987, sendo uma das mais longas da história, com 38 anos. A Revolução de 25 de Abril, em Portugal, ocorreu em 1974, e o fim do regime militar brasileiro foi em 1985.
Pessoas que viveram para ver cada um desses acontecimentos históricos ainda podem estar vivas e bem hoje! Não à toa, no filme de Rui Pedro Sousa, vemos os familiares das vítimas assistindo (em prantos, como também fiquei) ao filme que protagoniza seus falecidos entes queridos.
Quantas vivências desses momentos históricos foram e serão esquecidas? Quantas vítimas foram censuradas pelo medo e quantas nunca serão lembradas? Detention traz uma vontade marighelliana de lutar e aborda justamente essa vontade.
A professora e cada um dos alunos estavam dispostos a morrer pelo sonho da liberdade. O jogo também expressa, com maestria, o poder do capital em interferir na vida pessoal de cada indivíduo, tornando-os meros patriotas que servem ao Estado em favor da opressão.
Como dizem os Racionais MC’s: “Planejam nossa extinção”, e, através do medo dela, vão podar nossos sonhos, assim como Marighella bem sabia e como Detention demonstra magistralmente. Então, para também eternizar minha vivência pessoal desses momentos históricos, vou relatar onde esse tema me atinge em cheio.
Eternizando Minhas Vivências Pessoais
Em determinado momento do jogo, encontramos uma lista de livros deixada por um estudante. Quando a coletamos, ao invés de um simples papel, encontramos, na verdade, uma arma, e o escrito relata: “Uma lista de livros pode ser usada como uma arma para destruir tudo em minha frente.”
Essa não é a primeira vez que ouço como livros podem ser uma arma. Ou melhor, como o conhecimento, de maneira geral, pode ser usado como uma arma. Estranhamente, me lembro da primeira vez que ouvi isso.
“Planejam nossa extinção
Esse é o título
Da nossa revolução, segundo versículo
Leia, se forme, se atualize, decore
Antes que os racistas otários fardados de cérebro atrofiado
Os seus miolos estourem e estará tudo acabado.” – Negro Limitado, Racionais MC’s
Meu avô, um homem preto, militar, pobre, do Lobato, subúrbio de Salvador-BA, constantemente me dizia, com sua voz quase muda por conta de um câncer: “Nunca pare de estudar e aprender. Conhecimento é uma arma.” Meu avô nasceu quase no mesmo ano de Carlos Marighella e já era adulto quando a ditadura militar começou. Sempre foi uma pessoa boa, mas, infelizmente, sem educação, não conseguiu enxergar um futuro onde fosse verdadeiramente livre.
Trabalhando em condições análogas à escravidão, viu uma oportunidade de mudança quando lhe foi oferecida a chance de estudar no quartel para se tornar militar. Encantado com essa possibilidade, aceitou sem hesitar e, aos poucos, mudou a vida dele e de minha avó, uma mulher preta e pescadora do interior da Bahia.
Assim, ele encontrou sua emancipação, ainda que inconscientemente, às custas da expropriação da liberdade de muitas outras pessoas. Nunca foi capaz de refletir sobre as dores que o regime que ele servia causava, mas, em uma perspectiva pessoal, será que ele tinha outra opção?
Pouco depois do fim da ditadura, nasceu meu pai, um homem preto, militar, que também cresceu pobre no subúrbio de Salvador.
“Conhecimento é uma arma”
Meu pai alcançou seus sonhos ao decidir trilhar o caminho árduo, cansativo e perigoso da exceção para qualquer pessoa nascida na favela: a faculdade. Para pagar seus estudos, ele precisou se submeter ao trabalho militar, e assim se viu preso até conseguir se formar.
Meu pai se libertou ao estudar. Encontrou uma saída daquela realidade em que muitos ou morriam cedo ou viviam para serem presos – um destino que parecia inevitável. Ele também adquiriu uma emancipação da consciência e, por muito tempo (e talvez até hoje), detesta o que a polícia militar e a justiça burguesa representam, mas continua preso a essa realidade. Meu pai teve o privilégio que meu avô não teve: entender o que estava acontecendo no Brasil.
Então eu surgi. Um baiano pardo, misturado, sujo, mulato, mas que, desde cedo, assim como Marighella, teve acesso ao poder de sonhar e à educação. Mesmo sem perceber, meu pai sempre me fez repudiar a polícia militar. Ele detestava a ideia de um futuro onde eu não pudesse sonhar, temendo que eu acabasse como ele, preso a um serviço opressor.
Diferente de meu pai, a faculdade, graças a ele, sempre foi uma realidade para mim. Eu sabia que iria me formar, isso nunca esteve em jogo como esteve para ele – e ele garantiu que não estivesse para mim. No entanto, um sonho mais distante foi censurado pelo capital: existiria uma realidade em que eu poderia viver de me expressar através dos jogos?
uma carta para os que lutaram antes de mim
Foram vítimas de uma realidade opressora que não permitiu que vocês sonhassem. Mas vocês lutaram para sonhar e para que outros sonhassem. Vô, você morreu me querendo livre. Pai, você fez e faz de tudo para eu sonhar. Marighella, você nos mostrou que sonhar é possível.
Pai, Vô, Marighella: eu morreria – e quase morri – pela realidade do meu sonho. Imigrando para um país opressor, nas garras do racismo e da xenofobia, me vi prestes a não ter fundos para sobreviver. Ainda assim, nunca duvidei: eu morreria pela minha luta.
E de minha luta surgiu Monotonia.
Hoje, eu recebo e vivo não apenas fazendo jogos, mas fazendo Monotonia, o fruto do meu suor, sangue e da luta coletiva daqueles que estiveram comigo. Não foi uma luta individual. Eu lutei acompanhado, assim como cada uma dessas pessoas lutaram contra a censura que nos fazia apenas sobreviver, e não, de fato, sonhar com viver.
Detention, assim como Monotonia, é um símbolo de um sonho. Um sonho geracional.
Obrigado, Detention e Red Candle. Assim como vocês são para essas pessoas, eu quero ser para meu vô, meu pai e Marighella, nosso herói: Monotonia é por vocês.
Texto editado e revisado por Alexandre Avatics (@Avatics).
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Maravilhoso e inspirador! Parabéns, Breno, te desejo todo sucesso!