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Foto do escritorGabriel Morais Oliveira

Bem Feito: Uma pequena reflexão sobre escolhas — Crítica


Introdução

O texto a seguir contém spoilers de Bem Feito.


Imagine uma situação que condiz com a seguinte: Você acorda, escova os dentes, coloca a roupa, pega o ônibus, chega no seu serviço, encontra um bilhete em cima da sua mesa com as tarefas do dia e uma delas é falsificar a assinatura de um dos clientes, ou fazer uma nota fria.

 

Então você chega em casa, abre o seu Reels ou Tiktok e se depara com um pastor segurando um livro considerado sagrado, pregando que homossexuais estão em pecado e vão para o inferno, ou que uma mulher usar biquíni na praia está incorrendo em pecado por fazer com que os homens a cobicem, ou que a mesma tem que ser submissa ao seu marido, já que essa é a interpretação do sujeito (e de grande parte da nossa sociedade) sobre o que está escrito naquele livro.

 

Em uma tentativa de fugir desse chorume virtual, você tem a brilhante ideia de fazer o que? Isso mesmo: abrir o Twitter ✨. O primeiro tweet que aparece é um corte de Rodriguinho, no Big Brother Brasil, dizendo para Yasmin Brunet parar de comer se não ela vai engordar, envelhecer mal e se descaracterizar dos padrões de beleza.

 

Melhor fechar o Reels e abrir o Whatsapp, mas espera... Seu amigo está dizendo no "grupo dos bróders" com um certo orgulho que abusou da namorada enquanto ela estava dormindo.

 

Talvez o melhor mesmo seja dormir e torcer pra não acordar no outro dia, não é mesmo?


Você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com Bem Feito, um joguinho carismático protagonizado por um personagem mais carismático ainda chamado Reginaldo? Se você escolher ficar por aqui, prometo te dar uma resposta.


Quais são as suas escolhas?

Achei interessante começar esse texto com exemplos reais de situações que parecem não nos permitir fazer algo a respeito, pra fazer um paralelo com a genialidade com que Bem Feito se apropria da estrutura de game design inspirada em jogos que exigem a realização de tarefas pelo jogador, como "lista de tarefas" e "objetivos". A própria descrição do jogo o intitula um "simulador de vida", mas é bem comum encontrar esse tipo de estrutura também em visual novels.


Como num piloto automático, e sem questionar as mencionadas estruturas de design, é praticamente natural que nós, jogadores, sigamos os caminhos e tarefas que nos são impostas ou sugeridas, ou simplesmente ignoramos aquilo que acreditamos não ter alcance pra ser solucionado.


E foi exatamente assim que eu me comportei em Bem Feito.


A obra, que tem como uma de suas precursoras a maravilhosíssima @oiCabie, vem devagarinho, carismática, com uma trilha sonora alegre e acolhedora. A sua premissa é simples: como Reginaldo, você tem que cuidar da sua fazendinha, enquanto administra as suas amizades, e isso é feito através de um roteiro em formato de lista de afazeres que fica na sua geladeira, e é atualizada todos os dias pela manhã.


Você, então, faz o que o está escrito na listinha: lava a louça, coloca o lixo pra fora, rega as plantinhas e leva a sua amiga Gertrudes pra nadar. Só que essa aqui (abaixo) é a Gertrudes: um foguinho.


É aqui, então, que o jogo te pega, e não tem mais volta. Você vai servir comidinha com tempero especial pro Jubileu. Vai  jogar videogame com o Carlitos. Vai cortar um pedaço de bolo chamado Clarice. Até que, finalmente, a quarta parede se quebra, com um questionamento sincero do Reginaldo: por que você fez eu fazer todas essas coisas horríveis? Matar os meus amiguinhos? Só porque estava escrito em um pedaço de papel?

 

Quando eu joguei a versão Legado de Bem Feito pela primeira vez, até porque essa nova versão é um relançamento com diversos conteúdos adicionais, eu não tinha tido contato com obras como Doki Doki Literature Club ou Undertale, que utilizam dessa estrutura metanarrativa para questionar temas como suicídio e violência ao jogador, e acredito que eu tenha sido o alvo perfeito do experimento que a maravilhosíssima oiCabie queria proporcionar quando fez Bem Feito (e como fez bem feito, rs).


Uma confissão de vida

Vira e mexe eu me pego abrindo a carta do Reginaldo que ficou na minha área de trabalho, dizendo que ele seria pra sempre o meu amiguinho e que eu era eternamente responsável por toda a desgraça que ele passou.


Assim como eu controlei o Reginaldo para fazer coisas horríveis porque estavam escritas em um pedaço de papel colado na geladeira, já que o jogo estava me apresentando essa opção em forma de objetivo, ou porque eu imaginava que não tinha como escapar dessas “obrigações”, eu também já fui muitas vezes uma pessoa horrível na vida real, por conta de dogmas e convenções sociais.


O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre - você já deve ter ouvido falar nele - diz que o ser humano é condenado a ser livre, e essa liberdade reside em escolher e aceitar as consequências dos nossos atos. Isso significa, inclusive, que ao não escolher, já estamos fazendo uma escolha.

 

Mesmo que de forma fictícia, gosto de enxergar a materialização do sofrimento do Reginaldo, o bloco de notas, como um lembrete de todas as coisas extremamente ruins que eu já fiz no passado. Um pequeno memorial de situações em que eu acreditava não ter escolha, ou que sequer eu queria encontrar alguma, seja por conta de uma religiosidade torpe, posicionamento político ou aceitação social dos meus amigos.


Tenho vergonha, mas acho válido citar algumas situações como quando eu fui induzido a ter asco pelo Nordeste na vitória da Dilma como presidenta em 2011, ou como quando eu compactuei com dogmatismos religiosos cruéis, quando eu tolerei e reverberei ofensas e barbáries misóginas e lgbtqiap+fóbicas proferidas por amigos, e tudo por conta de convenções sociais, regras subliminares ou textos considerados sagrados, porque aquelas eram as "verdades absolutas". As regras. O que estava escrito e convencionado.


Inconscientemente, até o momento do questionamento, eu segui à risca o que me era dito e principalmente pregado. Se tá escrito, eu supostamente tenho que obedecer, não é?


O que mudou na minha vida?

Pode parecer exagero ou "forçar a barra" para alguns comparar Bem Feito com essa situação da minha vida, mas vocês não fazem ideia de como faz sentido pra mim contextualizá-lo com o tópico da falsa sensação de falta de escolhas, enquanto estamos inseridos em sistemas e círculos sociais feitos pra reverberar essa falsa sensação.


Lembro com muita dor no coração de quando eu não me posicionei, há muitos anos, quando um colega me confidenciou a sua homossexualidade, e foi agredido pelo pai depois de eu dizer que o amor dele com certeza seria maior do que o dogma cristão que era pregado pra gente aos domingos, e que ia ficar tudo bem. Esse foi o primeiro acontecimento que me fez questionar se de fato o que me era apresentado como verdade absoluta e inquestionável de fato o era, mas nesse momento eu não fiz nada, por medo da reprovação dos meus pais e da própria igreja.

 

No fim das contas, em Bem Feito Joguinho, Reginaldo viveu um inferno, muito bem representado no jogo, inclusive, porque eu não questionei o que estava escrito em um maldito pedaço de papel colado na geladeira. "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas" ganha outro significado nas mãos de Reginaldo. Quantas pessoas sofrem todos os dias por reverberarmos ofensas ou por não nos posicionamos contra elas? Porque eu não posso questionar o que está escrito em um maldito pedaço de papel que existe aqui do lado de fora também? Com certeza é algo a se pensar.


Esse confronto com o maniqueísmo causado pela positivação de leis e dogmas é algo muito frequente, também, nas discussões de âmbito jurídico. Em 2020, no auge das discussões sobre uberização do trabalho, escrevi o meu TCC de Direito com a temática do ataque direto aos direitos do trabalhador com a positivação (conversão em lei) da uberização na Consolidação das Leis Trabalhistas. Abri a monografia instigando o leitor sobre essa prevalência do bom senso sobre os dogmas, com um trecho de um livro da Hannah Arendt que eu gosto muito, chamado Homens em Tempos Sombrios:


"(...) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra. Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era de uma vela ou a de um sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva me parece uma questão de importância secundária que pode ser seguramente legada à posteridade.” ARENDT, Hannah: Homens em Tempos Sombrios (Companhia de Bolso; Edição: Edição de bolso (21 de outubro de 2008))

 

Quando eu mostrei esse texto para o Felipe Lins, ele me pediu para apontar o que mudou na minha vida em comparação com a época em que eu era uma pessoa desprezível. De antemão eu adianto que não acredito na compensação ou no apagamento dos erros, e tampouco que sou alguém digno de ser colocado como exemplo, mas hoje eu tenho ciência de que as pessoas podem mudar, e eu tive que passar por um processo muito grande de questionamento, autoconhecimento, terapia e amor-próprio, pra que eu pudesse transmitir esse amor e acolhimento que eu transmito hoje a outras pessoas. Talvez essas sejam as principais mudanças que aconteceram comigo, mas isso não significa que por muito tempo eu não tenha sofrido e me castigado emocionalmente por saber que eu machuquei pessoas durante esse processo de amadurecimento e abandono de práticas ofensivas. E pode ter certeza: as marcas ficam, pra gente aprender a lidar com elas e quem sabe se tornar uma pessoa melhor.


Eu prometo que em outra oportunidade eu faço um paralelo com outras obras sobre o meu processo de terapia e superação da rejeição dos meus pais e amigos quando eu me posicionei contrário às crenças religiosas e políticas deles, mas, por enquanto, eu só quero agradecer à oiCabie pela existência de Bem Feito e reverberar o que, pelo menos pra mim, é a principal mensagem do jogo:

 

Questione! Pergunte-se sobre as escolhas que você tem, principalmente se elas envolvem agredir, ofender ou machucar as outras pessoas. Saia do piloto automático. E quanto ao que autoriza essas ofensas, duvide daquilo que é imposto, daquilo que está escrito e convencionado socialmente. O amor e o acolhimento devem ser muito maiores do que qualquer agressão. Que tal começar fazendo o "final feliz" de Bem Feito?

 

Beijos do Hyliano e até a próxima!


Agradecemos gentilmente à Qubyte pelo envio da chave de Bem Feito.



Parágrafos especiais

Eu queria muito deixar registrado que Bem Feito foi um dos principais jogos que me motivaram a seguir a carreira de Jornalista de Jogos, e o porquê disso. Como um consolista que joga videogames desde criança e cresceu com esse hobby muito explorado pelo "boca a boca" na minha bolha social, tive pouco contato com títulos independentes.


Quando eu ouvi a @oiCabie, desenvolvedora, falando sobre o Bem Feito Joguinho no Up (finado Final Level Cast) e endossando a proposta metanarrativa do jogo, fui fisgado na hora. Bem Feito é um dos primeiros jogos independentes que eu joguei, que fugia do escopo massacrante da indústria AAA e que conquistou um espaço gigantesco no meu coração. Inclusive, a minha primeira análise (se é que posso chamar assim), foi feita lá em 2020, em um humilde textinho no backloggd:


Além disso, a Cabie também foi a primeira pessoa que eu tive a honra e a alegria de entrevistar na vida. Sou uma pessoa muito feliz e realizada de poder chamá-la de amiga hoje, de poder ver o sucesso de Bem Feito, tanto na sua versão Legado como no seu relançamento. Acho que agora dá pra entender o tamanho do carinho que eu tenho pelo Reginaldo, e não fosse por um primeiro contato com obras como Bem Feito, eu não teria começado a construir o meu sonho de traduzir os sentimentos que os jogos proporcionam como arte para outras pessoas. Existe um mundo em que conhecer os seus ídolos é uma coisa boa, queridos leitores!


Dito isso, joguem Bem Feito, se não jogaram ainda. Apoiem a indústria nacional de desenvolvimento de jogos, deixem-se cativar pelas histórias lindas que estão tentando chegar até vocês e contemplem o mercado de jogos independentes da forma que ele merece: com muito carinho.


Por fim, vale lembrar que Bem Feito está disponível desde o dia 1º de fevereiro com um descontão de 34% na Steam, e-Shop e PSN. O desconto também é válido para Xbox Series para os assinantes do Game Pass! (Verificar a data da publicação)




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