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O que você diria se pudesse conversar com a Mãe Natureza? Ou melhor, o que acha que ela diria, dado o cenário atual do nosso mundo? Se ela tivesse um sonho, qual seria? Esse sonho comportaria o fim da humanidade? Avowed não é sobre magia, cavaleiros ou aventura, mas sobre uma visão da natureza sobre o ciclo de vida, coberto por uma fantasia sobrenatural que, em vários pontos, se mostra extremamente real. Nesse mundo, brincamos com esse ciclo.
Quando morrer deixa de ser o fim da vida e se torna o começo do lucro, Avowed tece seu argumento. Somos o Porta-Voz, uma autoridade do império enviada para o continente das Terras Férteis com o objetivo de investigar e exterminar uma doença que causa insanidade e agressividade, chamada Praga dos Sonhos. Nosso personagem, porém, tem uma particularidade: marcas em seu rosto indicam que elu foi tocade por uma divindade, tornando-se uma deidade. Acontece que nossa personagem nunca soube quem ou o que é essa entidade... até chegar às Terras Férteis, onde começamos a ouvir vozes.
Essa entidade é coprotagonista nessa história e o pilar essencial não apenas dos conflitos narrativos, mas também dos dilemas internos que precisaremos enfrentar. Assim começa nossa aventura, com um mundo aberto separado em seções – regiões do continente que podemos visitar. Enquanto nos aventuramos pelas Terras Férteis, conhecemos companheiros e montamos uma equipe que nos ajudará a erradicar a Praga dos Sonhos, usando nossa força, magia e diálogos.

Avowed é simples, muito simples. Para pessoas que gostam de RPGs densos, pode deixar a desejar por apelar mais para a action, mas esse não foi meu caso: afinal, devorei o jogo e não conseguia parar de jogar, pois consegui focar apenas na experiência e me livrar do paradoxo da escolha. Por exemplo, não temos árvores de talentos gigantescas e aterrorizantes. O sistema de equipamento é muito mais focado nas armas que você usa, permitindo equipar um total de dois sets de armas, com duas armas cada, o que possibilita combinações como espada e escudo, grimórios, varinhas e até pistolas.
O jogo sabe que seu combate se trata de apertar o gatilho e dá ênfase nisso dentro de seu RPG. Os sistemas de criação e melhoria de equipamento, assim como o de cozinhar alimentos, são super simplificados e altamente eficazes. Raramente vejo vantagem em melhorar um item antigo, mas nesse jogo joguei com uma varinha que consegui cedo e segui com ela até o fim.
Na sua simplicidade, Avowed pôde focar em sua jornada e ainda entregar uma gameplay muito polida, balanceada e deliciosa de jogar. Recomendo demais usar magia ou arco e flecha, é prazeroso e vai te fazer buscar por combate mesmo tendo alternativas que o jogo faz questão de enfatizar. E claro, como um bom RPG, o jogo te dá muitos caminhos alternativos e vai te confrontar com escolhas difíceis. Afinal, não existe certo ou errado quando se trata da natureza.
NATURAL E SOCIAL

Veja, a fertilidade nas Terras Férteis envolve não apenas as criaturas, a vida em abundância e a flora expressiva, mas também o futuro, a esperança, as segundas chances. Esse mundo — compartilhado com Pillars of Eternity — pode ser lido como um novo horizonte de esperança para refugiados e excluídos de um mundo em crise, algo como o continente americano foi para a Europa por volta do século XV. Assim sendo, a fertilidade nas Terras Férteis é natural, mas também social.
Não demorei muito para sentir que Avowed falava sobre um desequilíbrio ambiental. Quando os primeiros afetados são a fauna e a flora, sabemos que se trata de algo que vem do chão, da água e do ar — elementos dos quais nós, humanos, nos blindamos, para o bem ou para o mal, com muros de pedra e paredes de metal. Inicialmente, queria ver onde isso ia chegar, pois, para além da crise ecológica, havia uma grande crise política nas Terras Férteis.
O Império Aedyr, do qual fazemos parte, invadiu a região com o propósito de trazer ordem e justiça a uma terra caótica. E, obviamente, isso também me chamou atenção. Um cenário imperialista que visa seu crescimento em prol da pobreza do continente, uma visão de ordem e justiça completamente autoritária e intolerante, que recorre ao genocídio no mínimo sinal de descontrole ou oposição. Para piorar, chegamos às Terras Férteis carregando essa bandeira, ao lado do império e do imperador.

Eventualmente, me vi em uma corrida para resolver a Praga dos Sonhos antes do império e sua legião de inquisidores, liderada por uma tirana genocida imortal, convicta de uma deusa tão genocida quanto. Não me faltaram motivações para vencer essa corrida, como podem imaginar. O mais interessante é o fato dessa personagem ser imortal, quebrar o ciclo da vida e da morte e estar lidando com uma praga que faz exatamente isso.
A Praga dos Sonhos, que estamos tentando conter, é um tipo de fungo que modifica seres vivos e reanima seres mortos. Algo semelhante aos esporos de The Last of Us, mas que, aqui, me fez ter uma leitura muito mais complexa sobre os temas de, bem... fungos. Eles são comumente associados à morte, e as flores, à vida. Fungos são um mau presságio, enquanto flores são um sinal de paz, amor ou futuro. Claro, flores são o presságio do fruto, o aviso de uma futura colheita, de fartura, de fertilidade. Como é o caso da orquídea, que é associada à fertilidade, talvez por uma cultura oriunda da Grécia Antiga.

E quando falamos de fertilidade, nas Terras Férteis, onde se passa Avowed, essa palavra tem muito mais força. Uma terra onde tudo é possível, onde tudo nasce, cresce e morre. Mas, tal qual uma orquídea que só germina quando invadida por um fungo do gênero Rhizoctonia, Avowed se fundamenta no simbolismo dos fungos, não das flores.
Vemos cogumelos por todo lado nas Terras Férteis. Nosso próprio personagem pode ser marcado com cogumelos no rosto, e aqueles afetados pela Praga dos Sonhos estão cobertos por fungos de todo tipo. Porém, diferente do que esperaríamos de um lugar repleto de mofo, tudo aqui respira vida. Cogumelos nas Terras Férteis são coloridos e brilhantes, deixando, na verdade, tudo mais lindo e fantasioso. Talvez apontando para uma função muito importante dos fungos.

Fungos podem ser vistos como parasitas, e muitas vezes são, de fato. Mas, por outras, são justamente os responsáveis pela vida. Assim como no caso da orquídea, temos também os fungos nas raízes de vegetais, nas raízes das flores que vemos, em uma relação mutualística chamada micorriza. Graças ao fungo, a planta consegue absorver mais água e nutrientes em troca de carboidratos e aminoácidos para o fungo. Assim, Avowed também retrata a relação humana com as Terras Férteis.
A água que lava, afoga. O fogo que queima, aquece. O fungo que nutre a fruta que comemos também é o veneno que nos mata. A natureza não tem intenção que não seja a de existir. Não existe "culpar a natureza" como se ela tivesse vontade ou desejo. A natureza age e reage, e nossas ações, como seres vivos dentro dela, influenciam o resultado, e nós temos desejos e aspirações que muitas vezes sobrepõem nossa função animal, e que é, também, natural do ser humano.
Para a minha surpresa, Avowed conecta os problemas sociais com os problemas ecológicos de uma forma metaforicamente encantadora e honesta, sem o clichê ecofascista de que a humanidade é o problema, e traz uma resposta clara à questão. As pessoas são como fungos: parasitas ou mutualistas, mas capazes de favorecer o ecossistema mesmo com suas ambições e desejos. O verdadeiro problema está naqueles que estruturam um sistema parasitário não apenas contra a natureza, mas contra os próprios seres humanos. Apesar de o jogo ser repleto de cogumelos e mofo, o imperialismo é o verdadeiro símbolo da morte em Avowed.
IMPÉRIO NÃO NATURAL.

"Imperialista (ou seja, uma guerra anexionista, predatória, de pilhagem)." — Vladimir Ilitch Lenin, Imperialismo, o estágio superior do capitalismo
Não é natural a soberania, a exploração da classe trabalhadora, a expropriação de terras férteis para agronegócios escravocratas, a marginalização de povos originários e o seu genocídio — direto ou indireto. O desmantelamento de uma consciência de classe em prol de um individualismo lucrativo para poucos e mortal para a grande maioria. O imperialismo pisa com botas de ferro não apenas num solo fértil, mas nas cabeças de quem o habita. Se antes havia uma relação mutualística, agora há uma relação parasitária, em que a cultura é crime e as pessoas são apenas um meio de extrair ao máximo tudo o que a terra tem a oferecer.
Matamos a natureza com nossas próprias mãos, a mando de um imperador do outro lado do oceano, e não estou falando do mundo real, por incrível que pareça. Ainda estou falando de Avowed. A Mãe Natureza ataca de volta, mesmo sem querer, pois ela não tem vontade. Ela apenas reage para sobreviver. Enquanto isso, um lado humano — que quer consumir, apoderar-se, colonizar — machuca a natureza com seu imperialismo e depois tenta consertar as consequências com mais brutalidade e genocídio.
Avowed é uma fantasia muitas vezes real, e vai te colocar em situações de decisões com um peso real, mesmo que, eventualmente, tenha seu lado bobinho e cômico. Ao não abraçar aquele ecofascismo bizarro, mostra que a culpa é de um colonialismo ostensivo orquestrado pelo lucro do império e por suas adjacentes fantasias religiosas.
Excelente jogo, e concordo com muitos de seus argumentos. Texto editado e revisado por Maya Souza (@ShinMayanese).
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