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Anodyne: um convite para sentir, mais do que entender — Análise | Crítica

O status de arte é um conceito capcioso, que ri de si mesmo pela própria polêmica que provoca, sendo assim, de certa forma, uma arte metalinguística involuntária. Tragicômico define bem a infindável e entediante rediscussão do status de arte dos jogos, e a cito aqui tão somente para tirar sarro dessa discussão, uma vez que a autoralidade presente no processo criativo dos jogos é mais do que suficiente para enterrar esse pseudo-debate de uma vez por todas.


Mas seguimos encontrando o debate no cotidiano, independente de quão rica a mídia dos videogames vai se tornando, seja por meio de jogos autorais e marginais, seus méritos e camadas próprios, seja pela influência que obras de diferentes mídias exercem umas sobre as outras na indústria criativa.


E falar de um jogo sobre seus méritos individuais sem recorrer às obras que o inspiram é um tanto difícil quando lidamos com jogos autorais, especialmente quando seus próprios desenvolvedores comentam sobre os bastidores de sua criação e eliminam quaisquer dúvidas que possam existir sobre tais influências.


O caso de Anodyne (2013) é exatamente esse. Tentar ignorar suas referências, em especial os jogos Yume Nikki e Zelda Link’s Awakening, citados nominalmente por seus desenvolvedores Melos Han-Tani e Marina Kittaka como parâmetros fundamentais para o seu design e temática é uma árdua tarefa que é, ao meu ver, infrutífera para a análise crítica da obra.


Referências e referências

 

É bem verdade que existe uma corrente de análise de mídia que defende que o escritor deve evitar ao máximo se ancorar em referências ao tentar descrever um produto ao criar seu próprio texto, e isso é algo que eu concordo especialmente quando apresentamos algo a um público que o desconhece.

 

Por mais que recorrer à atalhos mentais seja eficaz, se o público não possui em sua bagagem as obras citadas na comparação, há um sério risco de alienação do leitor ao consumir a análise, tornando-a sem efeito. Mas esse é um mal que afeta todo e qualquer tipo de obra criativa que se escora demais em referências e não somente textos descritivos de análises, resenhas e críticas.


Tome como exemplo pessoal meu o fato de que eu nunca consumi algo da série britânica Doctor Who. Tirando que existe uma espécie de espaçonave em formato externo de cabine telefônica inglesa chamada Tardis, algo que já me foi explicado em algum momento, eu tenho zero contato com a trama, os personagens e até mesmo o que é um Doutor Who e qual sua missão.

 

Se uma obra incluir em seu texto piadas e comentários que parafraseiam diálogos da referida série, ou usar seus elementos como comparativos para suas descrições, certamente eu não irei reconhecer ou sequer entender. Ela pode até funcionar dentro do contexto da obra e fazer certo sentido, mas sem a referência em minha bagagem certamente eu não farei ideia do que se trata.

 

Produções como o livro Ready Player One (2011), por exemplo, satirizado por sua vez pelo jogo marginal Ready Player Fuck (2017), tem parte de seu brilho ofuscado pelo uso excessivo de referências da cultura pop dos anos 80 para construir ou mesmo para valorizar a obra. Essa é inclusive uma crítica que lhe recai, e a premissa base da crítica extrapolativa presente no trabalho satírico de Kate Bennet, disponível gratuitamente e que foi objeto de consumo no clube de jogos semanais do Game Design Hub, o Peak da Semana.

 

Sem a recorrência constante à aparições e participações engraçadinhas que acenam para as pessoas que conhecem as referências, conhecidas em inglês como cameos ou ainda easter eggs as obras podem se desenvolver por si mesmas, conquistando seus méritos próprios.

 

Apesar desse parêntese divagante, dedicado a explorar esse tipo de prática, no que se relaciona às análises de jogos, o ideal é que nós, que escrevemos sobre eles, evitemos ficar fazendo comparações com outros jogos sem algum tipo de fundamento descritivo de suporte, sobre o risco de decair a eficiência e a eficácia comunicativa do texto.


Resumidamente: ao utilizarmos muito de referências para falarmos sobre um jogo, há uma chance de descaracterizarmos a obra sobre a qual estamos falando.

 

No entanto, por mais que prossigamos nessa linha que sou muito adepto, se faz necessário distinguir o uso de referências como um atalho (ou muleta) para definir algo, o que é muito problemático.


O outro caso que se diferencia, é a utilização de referências como conteúdo que exige conhecimento do consumidor, que pode ser alienante e ineficaz, de citar e explorar como as referências inspiradoras de um autor refletem na obra a qual estamos analisando, o que é algo que defendo que nós, na condição de analistas e críticos de videogame, deveríamos fazer mais frequentemente.


Afinal, não é nem um pouco raro que autores mixem elementos de obras que formaram sua bagagem cultural na criação de suas próprias produções, um processo amplamente explorado no livro “Roube como um Artista” de Austin Kleon. Portanto, há referências e referências, e não podemos pcolocarmos tudo num só balaio e assim nos furtarmos de explorar um aspecto importante de uma produção, que são suas influências.

 

Dito isto, voltemos ao nosso jogo em questão, Anodyne, para falar um pouco de suas inspirações.

 

surrealismo e onirismo

Link’s Awakening é uma das aventuras que mais foge ao padrão da série Zelda. Isso se dá especificamente por conta de sua narrativa e do local onde ela transcorre, a ilha Koholint.

 

Zelda é uma franquia cujos eventos se passam no universo fictício de Hyrule. Entretanto, em Link’s Awakening, acordamos após um naufrágio nessa misteriosa ilha sem nenhum tipo de conexão aparente com o restante do mundo.

 

A ilha então abriga a aventura do jogo e para evitar estragar detalhes de seu enredo, me limitarei a destacar o caráter sobrenatural e levemente perturbador do local, uma vez que o título usa essa estranheza para brincar com metalinguagem e usar personagens de outras franquias da própria Nintendo que não pertencem ao universo de Zelda.

 

A série, como um todo, é citada por Han-Tani como um ponto de partida para o projeto de Anodyne, mas o título específico de Link’s Awakening é um dos responsáveis pelo tom que impera na atmosfera jogo, especialmente alguns pontos do enredo mais inquietantes. Kittaka menciona que a influência não se limita somente ao primeiro título, mas se estende à própria filosofia do estúdio e de seus jogos.

 

Outra grande referência apontada é o adventure japonês Yume Nikki, famoso por ser uma obra bem influente entre desenvolvedores indies, tendo conquistado uma gama de fãs no ocidente desde que recebeu uma tradução em inglês, independente de seu posterior reboot e lançamento oficial.

 

No caso de Yume Nikki, é o aspecto surrealista e onírico que é destacado por Han-Tani como uma forte influência em Anodyne, além de seu texto mais centrado na psique dos personagens.


 

ANÓDINO

De origem grega, “An” significa “sem”, e “odune”, “sem dor”. Apesar do termo existir em português, anódino, conhecemos mais popularmente vocábulos como sedativo, paliativo ou ainda, analgésico. Não surpreende, portanto, a escolha do nome do estúdio responsável por Anodyne ser Analgesic Productions.

 

Definir o jogo sem recorrer a comparações é, como já mencionado, uma tarefa complicada em virtude do conceito inicial do mesmo ser uma aventura surrealista com vista de cima nos moldes de “zelda-like 2D” (nas palavras do próprio Han-Tani).


Porém estamos aqui com o propósito de melhor comunicar e fazer esse exercício, então podemos entender Anodyne como uma aventura 2D em pixel art com design voltado à exploração do ambiente utilizando um sistema de progressão baseado em travas e chaves, ou seja:

 

Encontre chaves ou realize tarefas que destravam passagens e desencadeiam o desenrolar de eventos e assim vamos avançando na progressão da jornada do nosso protagonista.

 

A atmosfera do jogo, como já mencionada, envolve o chamado estado onírico, que se caracteriza pela semelhança a um sonho lúcido ou a um devaneio, onde diálogos são crípticos e desordenados, localidades não seguem uma linha progressiva necessariamente orgânica e eventos transcorridos podem soar desconexos ou sem sentido.

 

Esse tom é reforçado pela arte visual empregada e pela trilha sonora, com tons mais escuros, gerando ambientes sombrios, povoados com figuras pitorescas, salas vazias, labirintos desconcertantes e o uso de progressões rítmicas que mudam subitamente o andamento, ora acelerando ou cadenciando as notas de forma a causar uma inquietação, ora desacelerando a ponto de causar uma sensação de estar flutuando, transmitindo uma calmaria relaxante.


A quebra dessa alternância constante e irregular de sentimentos vem nos momentos em que estamos no chamado Nexus, cuja trilha usa modulações, sobreposições e ecos ondulares que evocam uma sensação de tontura ou desorientação, além da trilha dos chefes que impõe a sensação de perigo e prontidão emergenciais típicas de um combate mortal.

 

Além da arte visual e sonora trabalhando coordenadamente para transmitir as intenções dos autores, o jogo encontra em seu texto mais um agente condutor das ideias que a narrativa ambiental desenvolve.

 

Nesse aspecto Anodyne entrega em sua prosa um caráter igualmente irregular na sua narrativa, caracterizado pela alternância estrutural e estilística de seus locutores.

 

Criaturas sencientes discursam de forma orgânica abordando diversas temáticas humanas, ora de forma mais filosófica, ora de forma mais íntima. Já objetos inanimados como pedras alternam entre relatos mais formais e declamações mais poéticas, aqui e acolá fazendo comentários metalinguísticos sobre quebra-cabeças a serem resolvidos.


A vermelha e enferrujada estátua se moveu; E abriu caminho para poços profundos; Um labiríntico calabouço seguiu; Logo após, uma grande tenda de circo; "Quem são os guardiões?" Eu pergunto; "Quem deu a vida para salvar este local?"; Eu temo a dor, assim como eles; Mas o que realmente temo, é a morte. — Pedra no Jardim Go

 

Esses discursos mantém a coesão com a proposta do todo, oferecendo constantemente um misto de mensagens coerentes e incoerentes, transitando entre a lucidez mais pragmática e a digressão mais errática e delirante que caracterizam o conjunto artístico de Anodyne.

 

arte por excelência

Talvez um dos maiores prazeres em apreciar um jogo tão autoral quanto Anodyne resida nesse caráter aberto e interpretativo que a arte reflexiva e provocativa é capaz de entregar.

 

Isso não vem com o custo de um design de jogo mais pobre, muito pelo contrário. Anodyne não se furta em oferecer desafios de exploração, quebra-cabeças e ação típicas de jogos do seu gênero e sua fórmula, enquanto enriquece o entorno de seu ciclo de jogabilidade com tantas camadas interpretativas e contemplativas.

 

A poesia contida no jogo transcende as aspirações comerciais típicas de jogos mais corporativos, algo que vimos tomar de assalto a Internet e as redes sociais quando jogos como Undertale estouraram a bolha. São temáticas fortes como tragédia humana, inquietações existenciais e tormentos pessoais explorados de forma deliberadamente superficial e vaga, na forma de falas e atos bizarros praticados até mesmo por nós, jogadores, muitas vezes sem um contexto claro que justifique.

 

Anodyne é um jogo nebuloso, enigmático e inquietante que exala a arte em sua plenitude. É difícil de compreender, mais ainda de explicar. É como, pedindo perdão pelo uso de um comparativo referencial amplamente criticado em nosso começo de diálogo, pretensamente justificado pela inclusão deste aposto, ler um quadrinho de Laerte: talvez não seja sobre entender, mas apenas sentir.


E a interpretação faz parte da experiência. Como há de ser.




Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano)




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